Foto do(a) blog

O saber dos pais, as invenções dos filhos e o conhecimento dos especialistas

O que falamos faz marcas na criança

Talvez o excesso, a fala desenfreada do adulto, contribua para que nossos pequenos tenham esse comportamento sem limite que tanto abordamos na sociedade atual

PUBLICIDADE

Por Ana Clélia de Oliveira Rocha
Atualização:

Se queremos refletir sobre o desenvolvimento infantil e a da infância na contemporaneidade precisamos levar em conta que o sintoma da criança é a resposta que ela tenta dar ao enigma do desejo dos adultos: que queres de mim?

( Nilson Sibemberg/no artigo de 12/09, neste blog)

PUBLICIDADE

 " Você culpa seus pais por tudo / E isso é absurdo / São crianças como você / O que você vai ser quando você crescer?"

( Renato Russo, Pais e Filhos)

Um garoto autista, fanático por futebol,me pergunta numasessão porque a moça que apareceu na TV chamando um goleiro de macaco estava sendo presa. Foi muito difícil explicarpara ele que a palavra vinha carregada de um preconceito.Tentava,e ele continuava: "Mas macaco não é um bicho?".Depois de passarmos boa parte do tempo do atendimento tentando elaborar uma resposta,eleme mostra umvídeo da primeiro jogo da copa onde apareciam pessoasxingando a presidenta: "Ana, eles estão chamando a Dilma de macaco também?"

Publicidade

Uma amigacomenta quea filha de 9 anos estava horrorizada, pois os colegas da escola gritavam,na semana que antecedeu a eleição presidencial:"Ebola , Ebola,leva a Dilma embora".

Tais perguntas e comentários não me saem da cabeça. O que responder ao meu paciente? O que dizer para a filha da minha amiga?

Trabalho muito para que uma criança fale, afinal, minha especialidade nos quase 30 anos de profissão é com aquelas que apresentam um atraso no desenvolvimento de sua fala.

Lembrosempre da frase de uma mãe, logo que eu me formei,na sessão de alta do seu filho pequeno:"O que faço com ele falando???" Esta pergunta tem sido resignificada ao longo da minha vida, tanto no campo teórico quanto no atendimento clínico, poisrealmente tomar a palavra não é algo simples,este ato implica uma relação que se estabelece com o outro, relação social que implica desejo, reconhecimento, aprendizagem, enfim, que me posiciona diante de um outro. Portanto deve-se cuidar do que se fala, para quem se fala, o que se fala... pois falar implica também em ouvir, em repetir, em apreender.

Novamente me vem umaletra do Renato Russo:

Publicidade

"Ainda me lembro aos 3 anos de idade

O meu primeiro dia na escola

Como eu tive vontade de ir embora

Fazia tudo que eles quisessem

Acreditava em tudo que eles me dissessem

Publicidade

Cresci e apareci e não vi nada

Aprendi o que era certo com a pessoa errada

Nada era como eu imaginava

Nem as pessoas que eu tanto amava

Mas, e daí? Se é mesmo assim

Publicidade

Vou ver se tiro o melhor pra mim

 Me ajuda se eu quiser

Me faz o que eu pedir

Me faz o que eu quiser

Mas não me deixe aqui

Publicidade

Ninguém me perguntou se eu estava pronto

E eu fiquei completamente tonto

Procurando descobrir a verdade

No meio das mentiras da cidade"

Nossa responsabilidade com as crianças não é pequena. Nossa responsabilidade com o que falam e como se posicionam, através da palavra, numa sociedade. Qual a diferença entre ofender um presidente, xingar um professor, os pais, o motorista do carro ao lado, um amigo? Como cumprir a tarefa de participar ativamente da construção e desenvolvimento de uma criançaconsiderando que ela também é uma cidadã?A Paula Ruggierojá perguntou num artigo anterior ( postado em 9/10) neste mesmo blog: " Como eu ensino meu filho a não bater para resolver um conflito pela conversa??" E responde : "a consequência dos atos é o que ensina qualquer criança".

Publicidade

O silêncio as vezes é uma grande saída. Saber silenciar e saber falar enfim, saber se posicionar de uma forma ética e respeitosa diante do outro é algo que também se ensina - no sentido mais belo de ensinar: o que se transmite, o que vemos de nosso em nosso filho...

O adulto, para uma criança, é esta mão segura em que, através da sua palavra, o pequeno se conforta. É preciso um pai dizer"não tem lobo" e a criança dormir sossegada, ou como Chico Buarque fez no seu livro Chapeuzinho Amarelo, ajudando as crianças a transformar lobos em bolos,é preciso uma mãe sorrir quando o bebê começa a falar "mamãe" para que esta fala retorne e retorne...

O que falamos está fazendo marcas... todas as palavras... A criança está apreendendo e esta aprendizagem passa também pela imitação, pela colagem da fala do outro... e talvez o excesso, a fala desenfreada nossa, do adulto,possa também contribuir para que nossos pequenos tenham esse comportamento sem limite que tanto abordamos na sociedade atual; mais e mais a criança parece falar o que quer, sem respeitar o outro, atropelando um colega, surdo à intervenção de um professor. Se sua vontade não prevalece, se sua palavra não comanda e tampouco sustenta uma argumentação estamos a um passo do preconceito, do desrespeito ao outro, do narcisimo ou... do sossega leão dos nossos tempos: um remedinho...

 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.