Um estagiário no cinema da Boca do Lixo.
Foto: Carlos Castelo
Eu estava com 21 anos. E em dúvida se continuava a faculdade de Jornalismo ou se prosseguia na de Cinema, onde acabara de entrar.
Qual não foi a minha alegria ao ver que aportara ao lado de minha residência uma trupe de cinema. Várias caminhonetes trazendo atores, atrizes, tripés, luzes, lentes, câmeras. Não tive dúvida: toquei a campainha da casa , me identifiquei como aluno de Cinema e pedi para assistir às filmagens.
- Tudo bem. Só não vai trazer outros carinhas pra ver a mulherada - me pediu um dos técnicos.
Entrei no set com a expectativa altíssima. Não esperava ver nada menos que um Truffaut dirigindo. Mas as primeiras falas entre diretor e atriz me mostraram que eu estava diante de uma típica produção da Boca do Lixo paulistana:
- Atenção! Câmera! Ação! Desce a escada, Wanda. Vem vindo. Olhando na lente. Isso. Bacana. Agora aquela cara de sacana. Perfeito. Isso, bem vagaba!
E depois de alguns segundos dessa "aula" de direção, ele interrompeu a cena assim:
- Desliga tudo! Wanda, adianta fazer cara de sacana sem mostar o peitoral? Ô Edinho (assistente de produção), vai lá e baixa a blusa dela. Uns quatro dedos. Aí. Vamos rodar!
Alguns meses mais tarde, depois de ajudar a carregar caixas e praticáveis como estagiário em outras empreitadas, fui efetivado como assistente de terceiro eletricista júnior. Na sequência me contrataram para a fita "O Artesão de Mulheres".
Na cadeia alimentar de uma equipe, o terceiro assistente de eletricista júnior é o coliforme fecal do cocô do cavalo do bandido.
Já no primeiro dia de filmagem fui chamado pelo segundo assistente sênior que explicou minhas atribuições de forma pragmática:
- Tu só vai fazer duas coisas. Puxar fiação pra cima de teto, botar umas luvas e ficar segurando essas lâmpadas aqui.
As lâmpadas de refletor que eu deveria segurar eram de tungstênio. Se tocadas sem proteção, explodiam jogando estilhaços por metros afora.
Outro problema: cada uma custava um jantar no Fasano com direito a macarrão com fios de ouro no lugar do queijo ralado e Brunello de Montalcino.
Durante as filmagens explodi sete lâmpadas.
Falei tanto de minha atividade como eletricista que quase me esqueço de comentar o filme em si.
Existem autores que afirmam existir apenas seis situações dramáticas possíveis no teatro clássico. Na pornochanchada só há uma possível: "homem quer transar com mulher; sequências rápidas de obstáculos ao coito, mulher transa com homem".
Isto, é óbvio, entremeado por planos de executivos bebendo uísque Old Eight e trajando ternos de gosto duvidoso.
No geral, "O Artesão de Mulheres" não fugia a essa regra. A única diferença é que, como a verba era curta, os executivos bebiam Cynar.
Nas pornochanchadas também não havia sexo explícito. Havia sexo implícito, mas nada que ultrapassasse a encenação de movimentos coxo-femurais frenéticos, caretas e gritos, muitos gritos.
Depois de amargar a condição de terceiro assistente de eletricista júnior por algum tempo, fui promovido a contra-regra na produção "Excitação Diabólica", do diretor John Doo: um terror erótico.
A minha rotina agora seria bem mais excitante.
80% das cenas eram rodadas em um motel da rodovia Raposo Tavares. Uma das minhas funções era deitar por cima das atrizes quando o ator que contracenava com elas tinha caimbras . Explico: certas sequências demoravam horas para serem rodadas. E o elenco não podia sair da posição em que se encontrava ; o diretor de fotografia já havia feito as medições de foco, acertado a luz. Nada podia se mexer.
Com 20 técnicos dentro de uma suíte, luzes fortes, muita gente terminava passando mal.
- Vem deitar, Castelinho! - gritava o diretor.
E lá ia eu, todo solícito, para o sacríficio de me estabacar por sobre a nudez de Aldine Müller ou Sandra Bréa. Ficávamos ali, nariz com nariz, joelho com joelho, conversando sobre meteorologia, cortes de cabelo, viagens, novelas.
Ah, os anos 1980...