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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Como é fácil fingir que é fácil sequestrar uma criança

O sucesso de um vídeo mostrando como seria fácil sequestrar crianças espalhou culpa e terror pelas mães conectadas à internet. Mas era uma espécie de pegadinha, não um experimento social de verdade. E nós não precisamos levar pegadinhas tão a sério.

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

Como é fácil sequestrar uma criança! - exclamaram os pais mundo afora ao longo dos últimos dias, desde que esse vídeo do comediante Joey Salads viralizou na internet. Milhões de pessoas vêm se espantando ao ver como esse ator, especializado em pegadinhas, facilmente consegue que crianças conversem com ele e saiam de mãos dadas para ver seus outros cachorrinhos, diante do olhar atônito das mães. E como se elas já não carregassem culpa e medo suficiente simplesmente porque esses acessórios vêm de fábrica quando alguém se torna mãe, agora elas ainda se sentem piores porque não ensinaram seus filhos o suficiente a não falar com estranhos. Uma delas desanca o pobre rebento diante das câmeras, apontando para Joey Salads e dizendo que o filho poderia ser sequestrado por aquele homem e nunca mais ver a mamãe - "É isso que você quer?", interroga o garoto pré-escolar.

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Calma, gente. O sujeito faz pegadinhas, não faz "experimentos sociais" de verdade. Claro que é um assunto sério (embora não sejam 700 as crianças desaparecidas dessa maneira nos EUA como ele diz, e sim pouco mais de 100 de acordo com o Departamento de Justiça Americano, número semelhante ao do Brasil), mas existem vários furos no vídeo. Em primeiro lugar, os garotos estão brincando no parquinho sob supervisão de adultos. Isso faz diferença, porque qualquer um que já esteve nessa situação sabe que de tempos em tempos as crianças olham para onde os pais estão, certificando-se de que continuam lá e que elas estão seguras. Dessa maneira um garotinho pode muito bem ter ido ver os cachorrinhos porque sabia, mesmo inconscientemente, que se fosse algo perigoso aquele adulto responsável por mantê-lo a salvo faria alguma coisa.

O grande furo, no entanto, é que as crianças filmadas são pequenas demais para ficar sozinhas na rua. As mães descabelam-se diante da ameaça de que se os filhos estivessem sós eles poderiam ter sido levados embora. Alimentadas por essa perspectiva sentem que não inculcaram direito na cabeça das crianças que elas não podem ir com estranhos. Mas espere. Quem deixaria uma criança daquela idade brincando por conta própria num parque público? É como deixar um vidro de remédios coloridos e docinhos aberto ao alcance delas e dizer "Não mexe, viu?". Não adianta. Por isso a pegadinha é falaciosa - é óbvio que as crianças pequenas não se comportam conforme foram ensinadas. Elas são pequenas! Mas o vídeo trapaceia ao fingir que isso é surpreendente. Ele manipula a situação para que a ênfase recaia sobre o comportamento "errado" das crianças, levando-nos a esquecer da atitude correta dos pais que estavam ali o tempo todo.

Então as mensagens finais não são "Você está sendo negligente!" e "Você deveria martelar mais ainda na cabeça dele para não falar com desconhecidos". Ao contrário, elas são "Continue fazendo o que você faz: fique de olho nas crianças" e também "Nunca leve a sério quem vive de fazer pegadinhas".

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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