EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Psiquiatria e sociedade

Opinião|Gay, homofóbico e radical -- algumas peças no massacre de Orlando

Não existem explicações únicas para crimes como o massacre de Orlando. Mas as peças que têm surgido até aqui se encaixam, dando ao menos uma ideia do que pode estar por trás da tragédia.

PUBLICIDADE

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:
 Foto: Estadão

Omar Mateen, em foto sem data de seu perfil no Myspace Foto: AFP PHOTO / MYSPACE.COM

 

PUBLICIDADE

Estado Islâmico reivindicou a autoria do massacre da boate Pulse em Orlando. Se é verdade, porque o pai de Omar Mateen, autor do crime, diz que não tem nada a ver com religião? Ele acredita que a motivação seja a homofobia. Mas se é verdade, então porque ele tinha perfil em sites de relacionamento homossexual e frequentava a boate gay? Por incoerente que pareça, dessa salada de motivos pode emergir uma explicação bastante lógica para o maior massacre ocorrido - até agora - nos EUA.

Para começar do fim, o comportamento do Mateen sugere, ao menos visto de longe, alguma ambiguidade com relação à sua sexualidade. Pode parecer estranho alguém que de tão homofóbico ficou transtornado vendo dois homens se beijando, ter dúvidas quanto à sua sexualidade, mas na verdade isso é quase a regra. Num famoso estudo dos anos 90 do século XX, pesquisadores instalaram sensores nos pênis de homens vendo vídeos eróticos. Descobriram que os mais homofóbicos diziam estar menos excitados do que os não-homofóbicos quando o conteúdo era homossexual, mas os sensores indicavam exatamente o contrário - eles eram desmentidos por seus pênis. Interessante que essas diferenças não apareciam se os vídeos eram heterossexuais (expliquei em detalhes a pesquisa nesse texto anterior). Esse ano mesmo foi publicada outra pesquisa, que instalou rastreadores de olhar em voluntários e apresentou fotografias de casais homo ou heterossexuais. Os pesquisadores confirmara que parte dos (mas não todos) homofóbicos de fato apresenta atração homossexual (não necessariamente consciente). Particularmente eu sempre achei estranho a raiva que algumas pessoas têm dos gays. Posso não compartilhar dos mesmos gostos, mas e daí? Eu não saio por aí xingando quem gosta da banda Calipso, agredindo fãs de Romero Britto. Por que então algumas pessoas que condenam os gays têm tanto ódio? Essas pesquisas apontam para algo que o velho Freud já tinha imaginado - a agressividade pode ser uma maneira de lidar com o próprio conflito (muito) mal resolvido. O que faz sentido no caso do assassino de Orlando.

Estaria então explicado como ele pode ser ter conflitos com sua sexualidade e mesmo assim (ou até por isso) ser tão homofóbico. Mas onde entra a religião?

A estratégia do Estado Islâmico é riquíssima do ponto de vista de recrutamento e propaganda. Em primeiro lugar eles adotaram um formato de time de futebol: basta declarar-se simpatizante para já ser parte do grupo. Se alguém, em qualquer lugar do mundo, comete qualquer barbaridade e diz que foi em nome do EI, eles endossam e assumem a autoria. E estão cobertos de razão, pois embora não tenham dado suporte material, orientação ou sequer ordenado o ataque de Marteen, eles forneceram a desculpa que ele precisava. Propagando um discurso ao mesmo tempo radical e amorfo, estimulando as ações individuais e autônomas em nome de temas pouco claros (purificação, moral, costumes etc., podem ser interpretados de formas muito diferentes por pessoas diferentes), eles permitem que qualquer um cole sua própria causa pessoal ao discurso do EI. Se eu odeio (ou invejo) ricos, posso bem roubar pelo califado, pois estarei sabotando o sistema. Se eu não suporto a liberação feminina, vou massacrá-las com a consciência limpa de quem cumpre um dever. Cada um remete à autoridade maior do Estado Islâmico aquilo que secretamente tem desejo de fazer.

Publicidade

Então, temos um sujeito que não sabe lidar com sua sexualidade. Ele desenvolve uma agressividade contra os gays como forma de se proteger da sua angústia (os extremos trazem o conforto de sanar qualquer dúvida). E sentido-se excluído, marginalizado por sua origem (os relatos de que cresceu sofrendo bullying por ser estrangeiro são consistentes), encontra no discurso do EI uma chance de se identificar com outros excluídos, um sentido para seu sofrimento (como também já conversamos em outro artigo) e, pior, uma solução definitiva para eles.

Não pretendo esgotar assunto tão complexo nem oferecer explicações definitivas. Mas de tudo o que vimos até agora, as peças que pareciam contraditórias na verdade se encaixam muito bem. Infelizmente.

Cheval, B., Radel, R., Grob, E., Ghisletta, P., Bianchi-Demicheli, F., & Chanal, J. (2016). Homophobia: An Impulsive Attraction to the Same Sex? Evidence From Eye-Tracking Data in a Picture-Viewing Task The Journal of Sexual Medicine, 13 (5), 825-834 DOI: 10.1016/j.jsxm.2016.02.165

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.