PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Psiquiatria e sociedade

Opinião|Os pelados e suas razões

A nudez pública não é um comportamento normal. Trata-se de um desvio da norma, de uma exceção - uma anormalidade. Então é uma doença? Não necessariamente. Além dos transtornos mentais, pelo menos outros dois motivos para tirar a roupa em público me vêm à mente: a excentricidade e o protesto.

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

Se ainda não perdi as contas, já são quatro os pelados de Porto Alegre nas últimas duas semanas. Desde 30 de outubro, quando uma mulher foi detida por estar correndo nua num parque da cidade, mais três casos foram flagrados, no que parece já configurar uma tendência. Das quatro pessoas, duas mulheres foram abordadas e levadas - adivinhe para onde? - para o psiquiatra. Ambas teriam problemas, segundo informações de familiares e amigos, o que explicaria o comportamento.

PUBLICIDADE

Tenho dúvidas se a mera presença de problemas explica o fenômeno como um todo. A psiquiatria (bem feita), como qualquer ramo da medicina (bem feita) se esforça para diferenciar o que é ou não doença. No caso da pressão alta, para ficar num exemplo clínico, uma vez detectada a média dos valores de pressão arterial da população - 120 x 80 milímetros de mercúrio, o famoso "doze por oito" - descobrem-se quais as taxas que trazem mais risco de complicações para o organismo e voila, definimos uma doença: "hipertensão arterial". Vá tentar fazer isso no caso da psiquiatria: estabelecer o comportamento médio, descobrir quando os desvios dessa média se tornam prejudiciais, e então determinar o que é doença. Parece bem mais complicado. E é.

Veja o caso da nudez pública. É um comportamento normal? Não. Trata-se de um desvio da norma, de uma exceção - uma anormalidade. Então é uma doença? Não necessariamente. Além dos transtornos mentais, pelo menos outros dois motivos para tirar a roupa em público me vêm à mente: a excentricidade e o protesto.

Começando pelo último: a atitude de se expor sem roupas gera uma subversão da ordem social esperada. Isso pode ser tão chocante que, assim como destruição de propriedade ou greve de fome, é utilizado como um meio para atrair atenção a uma causa ou frisar um ponto. Diz a lenda que São Francisco de Assis teria arrancado as roupas e lançado-as aos pés de seu pai, simbolizando a renúncia a todo bem material que dele recebera, iniciando nu a caminhada em direção à pobreza. Quem ousaria dizê-lo louco? Essa nudez funciona por ser extrema, anormal, mas o ato é deliberado e tem um objetivo externo, político ou social.

Na excentricidade, a nudez é quase um estilo de vida. Como no caso dos naturistas, que defendem um retorno do contato pleno da humanidade com a natureza. Para eles as roupas são uma artificialidade que nos afasta desse contato, e por isso adotam o nudismo. Esse comportamento não tem qualquer conotação sexual ou finalidade política. Simplesmente sentem-se bem assim e buscam outros com quem compartilham tal sentimento. É excêntrico, porque fora dos padrões comuns. Mas é uma atitude também voluntária, e se não tem objetivo externo, apresenta no mínimo clara motivação interna.

Publicidade

Por fim nos casos de doença mental, a nudez não é uma decisão livre, voluntária e deliberada. As causas são variadas, da agitação à hiper-sexualização, de sintomas psicóticos à desorganização do pensamento. Até mesmo crises de histeria, como na cena do filme Dr. T e as mulheres, do diretor cult Robert Altman, em que a atriz Farrah Fawcett entra nua na fonte de um shopping center (não por acaso, em frente a uma loja Godiva). O ponto em comum é que, nesses quadros, despir-se não cumpre qualquer propósito nem tem uma motivação interna racional. E seria só nessas poucas ocasiões que a psiquiatria teria um papel a desempenhar. Não acho que seja essa a regra em Porto Alegre - a coisa está assumindo ares de modismo. Mas ainda assim causa algum estranhamento: normalmente, as formas de nudismo não ligadas à doença mental são praticas em grupo. Quando um sujeito sozinho sai pelado na rua - como tem ocorrido ali - a sensação de anormalidade aumenta, empurrando nossa desconfiança para o lado dos transtornos mentais.

Mas não bastar ser estranho para ser doença. A diferença essencial entre essas três modalidades de nudez não é o grau de esquisitice, mas o tipo de motivação: a nudez de protesto busca um objetivo externo, a excêntrica tem motivação interna e a patológica carece de sentido. Antes de chamarmos os gaúchos de loucos, vale a pena investigar o sentido que esse comportamento pode ter para cada um.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.