Uma tarde, sem aviso, a música pousou nos seus lábios e pediu para ser assobiada. Isso foi há mais de um mês. Nesses trinta e tantos dias, ele, estivesse onde estivesse, punha-se a assobiá-la, como se fosse um moleque andando de bicicleta num parque.
Para um gerente de loja de eletrodomésticos, isso não chegaria a ser muito grave, se a música não passasse a exigir que ele a assobiasse quase sem intervalo, até quando falava pelo telefone. Quando descobriu que já o chamavam às escondidas de Rouxinol, tomou a decisão de ir ao psicanalista. Este naturalmente quis saber que música era aquela. Ele disse que ignorava seu nome, mas assobiou algumas notas.
"Que beleza!", comentou o psicanalista. "É Beethoven!"
"Quem?"
"Beethoven. Você gosta de música clássica?"
"Acho uma chatice."
"Então como isso foi acontecer?"
"Eu não tenho ideia", ele respondeu, sentindo-se como um réu diante do júri. E, quase implorando, perguntou:
"Já apareceu algum caso igual?"
"Igual não."
"O que será isso, doutor? Me disseram que é uma obsessão, sei lá, um transtorno."
O médico sorriu:
"O Brasil é um país de doutores. Estamos bem servidos."
"Mas é por aí mesmo, doutor? Uma obsessão, um transtorno?"
"Calma. Deixe que eu me preocupe com o diagnóstico. Tem dormido bem?"
"Bom, acho que sim."
"Acorda com frequência durante a noite ou a madrugada?"
"Duas vezes ou três, no máximo."
O psicanalista anotou:
"E, quando acorda, assobia?"
"Assobio. Mas só um minutinho ou dois. Logo durmo de novo."
Depois de mais algumas perguntas, o médico parou um instante. O assobiador, aflito, sem se dar conta, começou a assobiar. O médico exclamou novamente:
"Que beleza! Beethoven era um gênio! Ele fazia música de verdade, música com M maiúsculo. Nada contra a música popular, mas a clássica, ah, a clássica..."
O assobiador teve um momento de rebeldia. Pôs-se a assobiar com gosto Zeca Pagodinho. Ora, que se lascasse aquele Beethoven! O psicanalista, com as mãos nas orelhas e expressão de pânico, suava como se tivessem torcido um pano de limpeza em seu rosto ou como se uma dessas torneiras paulistanas, submetidas a rodízio, repentinamente explodisse com a pressão da água voltando e o achasse com cara de jardim.