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Impressões sobre a vida e seus arredores

O assobiador

A música de Beethoven não queria sair dos seus lábios

Por Raul Drewnick
Atualização:

Uma tarde, sem aviso, a música pousou nos seus lábios e pediu para ser assobiada. Isso foi há mais de um mês. Nesses trinta e tantos dias, ele, estivesse onde estivesse, punha-se a assobiá-la, como se fosse um moleque andando de bicicleta num parque.

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Para um gerente de loja de eletrodomésticos, isso não chegaria a ser muito grave, se a música não passasse a exigir que ele a assobiasse quase sem intervalo, até quando falava pelo telefone. Quando descobriu que já o chamavam às escondidas de Rouxinol, tomou a decisão de ir ao psicanalista. Este naturalmente quis saber que música era aquela. Ele disse que ignorava seu nome, mas assobiou algumas notas.

"Que beleza!", comentou o psicanalista. "É Beethoven!"

"Quem?"

"Beethoven. Você gosta de música clássica?"

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"Acho uma chatice."

"Então como isso foi acontecer?"

"Eu não tenho ideia", ele respondeu, sentindo-se como um réu diante do júri. E, quase implorando, perguntou:

"Já apareceu algum caso igual?"

"Igual não."

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"O que será isso, doutor? Me disseram que é uma obsessão, sei lá, um transtorno."

O médico sorriu:

"O Brasil é um país de doutores. Estamos bem servidos."

"Mas é por aí mesmo, doutor? Uma obsessão, um transtorno?"

"Calma. Deixe que eu me preocupe com o diagnóstico. Tem dormido bem?"

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"Bom, acho que sim."

"Acorda com frequência durante a noite ou a madrugada?"

"Duas vezes ou três, no máximo."

O psicanalista anotou:

"E, quando acorda, assobia?"

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"Assobio. Mas só um minutinho ou dois. Logo durmo de novo."

Depois de mais algumas perguntas, o médico parou um instante. O assobiador, aflito, sem se dar conta, começou a assobiar. O médico exclamou novamente:

"Que beleza! Beethoven era um gênio! Ele fazia música de verdade, música com M maiúsculo. Nada contra a música popular, mas a clássica, ah, a clássica..."

O assobiador teve um momento de rebeldia. Pôs-se a assobiar com gosto Zeca Pagodinho. Ora, que se lascasse aquele Beethoven! O psicanalista, com as mãos nas orelhas e expressão de pânico, suava como se tivessem torcido um pano de limpeza em seu rosto ou como se uma dessas torneiras paulistanas, submetidas a rodízio, repentinamente explodisse com a pressão da água voltando e o achasse com cara de jardim.

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