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Impressões sobre a vida e seus arredores

Todos somos tudo

Estamos prontos para ser os heróis do nosso tempo

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Por Raul Drewnick
Atualização:

A maior de todas as mudanças na literatura mundial começa com as aventuras de Dom Quixote, narradas por Cervantes. O livro derruba do seu trono simplesmente a principal figura de qualquer narrativa, até então: o herói. O alucinado fidalgo que vê gigantes onde há só moinhos de vento e os combate, para merecer com seus feitos as graças de sua dama, Dulcineia del Toboso, é um grande, um ridículo, um bizarro anti-herói. Desastrado, trapalhão, estouvado, cada drama de que ele imagina estar participando é sempre a mais patética das comédias.

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Era inconcebível, até surgir Dom Quixote, que um romance não celebrasse as façanhas de um herói, capítulo a capítulo, até o epílogo, em que ele, consagrado por suas façanhas, conquistava enfim a mais bela das mulheres, geralmente uma princesa ou uma rainha.

Dom Quixote abriu as portas da literatura para o herói comum, de carne e osso, sem poderes sobrenaturais e até sem poder nenhum. Essa revolução, entendida no início como uma brincadeira ou uma provocação passageira, acabou elevando à posição de protagonistas os mais improváveis personagens: sapateiros, alfaiates, cozinheiros, açougueiros e até certo Gregor Samsa, que um dia acordou transformado num inseto.

Os leitores foram se habituando aos novos heróis, saídos do cotidiano, sem nenhum parentesco com os deuses, e começaram a se perguntar: se esses aí são tudo isso, por que nós não? Eles são nós. A diminuição da nota de corte para os candidatos a herói provocou um entusiasmo geral, que os tempos mais recentes vieram confirmar: sexagenários aposentados começaram a se aventurar em maratonas, mocinhas gordotas passaram a tatuar nas partes pudendas, e também nas outras, lemas vencedores, rapazolas fracotes perderam o acanhamento e adotaram o figurino das camisetas justas depois de duas semanas de academia.

Com um empurrão da autoajuda, ensinando-nos que depois do primeiro passo vêm o segundo, o terceiro e os demais, aprendemos que podemos ser tudo que quisermos. E temos sido.

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Não nos perguntem se podemos ser isto, isso ou aquilo. Podemos. Podemos ser tudo: nós nos viramos nos trinta, e nos viramos bem. Podemos ser astronautas, se nos liberarem a astronave. Podemos interpretar Shakespeare com sotaque britânico, se nos franquearem um curso intensivo de inglês. Podemos ser cantores, se nos der na telha. Podemos ser escritores. Esta é, por sinal, uma atividade tão fácil que nem se conta mais entre as proezas. Depois da primeira frase, vêm a segunda, a terceira e as demais. É só ir anotando. Assim.

 

 

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