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Porque somos todos iguais na diferença

Famílias com crianças especiais vivem sem pensar no amanhã para superar dificuldades

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Por Claudia Pereira
Atualização:

Vivian Peltier e Fabiana Cristina Lopes são duas mães que possuem filhos que dependem delas 24 horas por dia. Elas compartilharam com o Família Plural seus medos e seus segredos para lidar com a dor e não deixar as adversidades abalarem o ambiente familiar.

Quando chegou ao quinto mês e meio de gravidez, Vivian Peltier, hoje com 32 anos, entrou em trabalho de parto de seu primeiro filho. Ela descobriu, naquele momento, que possuía um problema de placenta envelhecida, que amadurece antes do tempo necessário e começa a forçar a saída do bebê do útero. Com o nascimento prematuro, sua vida mudou completamente, não apenas porque se tornou mãe, mas, principalmente, porque daria início a uma grande luta pela sobrevivência de seu pequeno. No dia 02 de janeiro de 2010 nasceu Breno, ele tinha apenas 1,05 kg e passou longos 192 dias vivendo na UTI neonatal. Depois deste período incerto e estressante para os pais, ele finalmente teve alta, porém, em uma semana vivendo em casa, broncoaspirou o leite e teve uma parada cardíaca e sete minutos. A partir dali começaram suas complicações de saúde. "Ele começou a ter muitas crises severas de asma depois disso e nossa vida passou a ser de idas e vindas ao hospital, além de diversas internações", explica Vivian.

Breno, na UTI neonatal, com dois dias de vida 

Ele também teve paralisia cerebral bilateral, então, sua parte cognitiva e motora ficaram defasadas e, segundo a mãe, ele demorou muito mais tempo para sentar, falar, ir para a escola. "A fala veio depois dos dois anos, e os primeiros passos, aos três anos e oito meses". Segundo ela, a maior responsável por fazer Breno caminhar foi a irmã, Luna Sofie, que hoje tem quatro anos. "Quando engravidei dela fiquei muito assustada, pois não queria passar por tudo novamente. Mas desde o primeiro mês comecei a fazer um tratamento e pude vivenciar um outro lado da gravidez que não tinha conhecido". Ela e o marido acreditam que a irmã é a grande fonte de inspiração para o filho mais velho. E desde que ela chegou ele apresentou muitas melhoras. Para Elaine Siervo, psicóloga com especialização em terapia familiar e de casal, isso ocorre porque a criança não tem preconceitos. "Ela trata o irmão como uma criança normal, o enxerga como seu irmão, não como um deficiente. E tem de ser assim, os pais não podem estimular essa diferença. Ela vai descobrir sozinha as limitações do irmão. Não é necessário explicar que o outro tem algum tipo de problema, ela descobrirá sozinha". Mas de que forma isso afetou a vida familiar de Vivian? Antes de tudo isso acontecer, ela trabalhava como analista de importação e exportação em uma grande empresa. Com o nascimento de Breno nessas condições, precisou abdicar de todas as suas funções e se dedicar totalmente à maternidade. Mas é claro que a situação de incerteza afetou toda a família. Seu marido, Márcio Batista, 38, que na época tinha um trabalho estável acabou sendo demitido. "No tempo livre que eu tinha dava total apoio à minha esposa, me sentia culpado por não poder estar ao lado dela em tempo integral. O pensamento era 100% neles. Fui demitido por justa causa porque vivia chegando atrasado, faltando, passei a cometer inúmeras falhas por conta da preocupação. Não focava mais no trabalho". No que se refere às questões do casal, a vida também ficou bem diferente. "Você não pode exigir muito da sua esposa e passa a viver mais como companheiros do que como marido e mulher. É natural a vida de casal ficar um pouco anulada. Muitas vezes passávamos mais de uma semana sem nos abraçar ou beijar, mas simplesmente porque as preocupações e atribulações do dia a dia nos fazia esquecer disso, nossa atenção tinha outro foco", explica Márcio.

Vivian, Márcio, Breno e Luna Sofie 

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Segundo Elaine Siervo, ter o primeiro filho com problemas pode ser mais complicado, pois é o que gera mais expectativas nos pais. "O filho com problemas pode gerar os sentimentos mais diversos no casal. Pode causar depressão, rejeição, culpa (mãe se culpa de tudo), vergonha (tem o estigma social), pode até causar separação (energia colocada no filho, que requer muita atenção). Tudo depende de como estava o casamento antes dessa nova vida", diz a profissional.

Cada dia uma conquista

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Em sua casa, Fabiana Cristina Lopes, 36, lida com as adversidades da filha Natally, de 9 anos, com as emoções do marido Ricardo, 36, e dos filhos Richard, 18, e Kethylin, 15. Ela é o porto seguro da família desde que a caçula foi diagnosticada, há três anos, com uma doença degenerativa chamada encefalopatia aguda decorrente da doença do ciclo da uréia. Assim com o Breno, Natally também nasceu prematura e, aos seis meses de vida, começou a apresentar um quadro recorrente de convulsões epiléticas. Ficou nesta situação de epilepsia até os dois anos de idade, chegando a ter até 18 convulsões em um único dia. "Ela convulsionava o tempo todo, mamando, brincando, dormindo. Era desesperador", explica a mãe. Diante disso, Fabiana teve de abandonar suas atividades para ficar ao lado da filha todo o tempo. "Ela não podia mais ficar sozinha, cada hora era uma coisa e precisava correr para o hospital. Não podia delegar isso a ninguém, e nem tinha a quem delegar". Antes disso tudo acontecer, ela trabalhava como monitora infantil no Clube Escola, cuidava dos passeios socioculturais do local.

Natally antes de ser diagnosticada com a doença degenerativa 

Quando completou dois anos, como num passe de mágica, as convulsões cessaram e assim ela ficou até os quatro anos, quando teve um acidente na escola - uma queda - e voltou a ter as crises. Neste período, a família descobriu que ela também possuía celulite orbitaria pós-septal, doença que gera inúmeros problemas, sendo um deles graves infecções respiratórias. O estado clínico da Natally foi piorando dia a dia, até que, aos seis anos, teve o primeiro coma. Com os medicamentos que ela passou a usar, hoje em dia para se manter bem ela precisa de seis tipos diferentes, começou a ter tremores nas mãos e outros efeitos colaterais. Até uma suspeita de tumor, que levou a família a procurar o GRAAC (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer). E foi nos exames realizados pela entidade que descobriram a encefalopatia. Hoje, Natally não anda e não se alimenta mais por via oral, pois sofre de broncoaspiração. Precisa usar fraldas e não pode frequentar a escola. De tempos em tempos precisa passar por lavagens intestinais e, com todos esses problemas, também foi diagnosticada com um grau de retardamento. "Isso abalou muito nossa família, tínhamos uma criança normal que, de uma hora para outra, passou a ser totalmente dependente. Tive de parar minha vida, aprender tudo sobre essa doença, me preparar, pois muitas vezes tenho de fazer os procedimentos médicos em casa", conta Fabiana. No começo, o marido não aceitava a situação da filha menor, e os dois filhos mais velhos passaram a se sentir excluídos, deixados de lado. A irmã do meio, Kethylin, que sofria de asma passou a ter mais crises, e Richard, o primogênito, perdeu o ano na escola, não conseguia se concentrar. "No começo eu fiquei muito confusa, minha mãe vivia correndo de um lado para o outro, minha irmã parou de andar. Sabia que tinha de ter mais paciência, mas me revoltei por não ter mais a atenção dos meus pais. Foi uma fase muito difícil quando descobrimos a doença", comenta Kethylin. Ela diz ainda que ficou mais ríspida com todos, principalmente com as amigas, com quem passava a maior parte do tempo. Além disso, também teve problemas na escola, pois não conseguia prestar atenção nas aulas e ficava sempre pensando no que poderia acontecer com a irmã. Diz que tem muito medo do que pode acontecer e tenta não pensar nisso hoje, mas que depois de uma conversa que a mãe teve com ela e com o irmão mais velho, ambos passaram a ser mais próximos e transformaram a rebeldia em apoio. "Sinto que hoje tenho mais paciência, que sou mais irmã".

Da esquerda para a direita: Kethylin, Fabiana, Richard, Carla e Natally 

De acordo com Elaine Siervo, dependendo da fase que os outros filhos estiverem vivendo, essa mãe terá mesmo muito mais trabalho. "Se estiverem no adolescência, vão precisar de muita atenção, pois é uma etapa difícil. Se já estiverem no final deste ciclo, serão pessoas que provavelmente ajudarão muito a mãe. Podendo, inclusive, deixá-la mais tranquila", explica a psicóloga. Fabiana também sentiu que a conversa com os filhos foi o divisor de águas no relacionamento familiar. "A Kethylin passou a ter menos crises de asma e o Richard ficou mais comunicativo, mais atencioso. Eles passaram a ter mais diálogo com a irmã". Com o marido as coisas também melhoraram. Segundo ela, mesmo não aceitando, ele se esforça para estar presente. "Sinto ele muito inseguro ainda, tem medo de ficar com ela sozinho, mas sempre tenta assistir um filme, brincar de boneca e contar histórias".

Sem pensar no amanhã

Vivan e Fabiana não possuem apenas uma rotina parecida, mas também pensamentos idênticos quando o assunto é o futuro. Ao serem questionadas sobre o que esperam, a resposta vem sem demora e espantosamente com as mesmas palavras: "não penso no amanhã, vivo o hoje". Vivian acredita que essa experiência a transformou radicalmente. "Me tornei uma pessoa muito fria, conformada com muitas coisas. Não paro para fazer auto-análise de mim ou do meu meio. Vivemos apagando fogo. Quando penso que vou começar a viver mais tranquilamente aparece algum outro problema". Ela diz que nunca pensa no amanhã para não se frustrar, pois cada dia é uma conquista, a batalha é diária. Ainda no âmbito familiar, diz que várias vezes sentia que chegava ao seu meu limite. "Sinto que a família perdeu sua identidade, todos nós. Não sei mais quem eu sou, me vejo apenas como mãe deles. Me perdi tanto que não tenho outros assuntos para falar. Acho a maioria das pessoas vazias. Não que minha história vá consolar alguém ou me sinta melhor que os outros por vivenciar isso tudo, mas vejo tanta gente reclamando da vida e nem passaram pela metade do que eu, meu filho e minha família passamos. Isso me revolta um pouco", comenta a mãe de Breno e Luna.

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Luna e Breno em foto recente 

Quando avalia a relação que possui com o marido hoje, diz que, depois de terem por muitos momentos ruins, incluindo um período de separação, conseguiram dar valor às coisas que não enxergavam antes. "Fazíamos as coisas juntos, mas não valorizávamos. Não tínhamos noção do quanto era especial para o Breno ver todos juntos no shopping, por exemplo. Superamos tudo sem ter apoio de ninguém". Ela comenta que por todos os hospitais por onde passou, e passa com o filho, psicólogos vêm conversar. "Eles acham que sou muito calma e que um dia vou explodir. Sempre tive bloqueio em relação à terapia. Pode ser que eu tenha agido errado, mas nunca me identifiquei com nenhum profissional a ponto de querer ter consultas e falar das minhas coisas. Nunca me permiti dizer que precisava, sempre achei que ia conseguir sozinha. Não sei se sinto falta, não penso nisso. Talvez chegue o momento em que eu fale que precise". Nestes casos extremos, em que as famílias possuem filhos que exigem atenção 24 horas por dia, sete dias da semana, a psicóloga Elaine Siervo recomenda que a pessoa que se dedica mais à criança tenha um acompanhamento psicológico. "O ideal seria fazer uma terapia para ela tratar todos os pontos, o lado mulher, profissional, e não apenas o lado mãe. Assim ela conseguiria ter um maior equilíbrio na distribuição de sua energia". Fabiana relata sua experiência com a filha como uma angústia, uma insegurança constante e um ponto de interrogação em tudo. Também é vista como uma pessoa fria por amigos e parentes, mas ela se considera madura. "Muita gente diz que me tornei uma pessoa fria, mas preciso ser calma, pois ver um filho que andava ter de ficar em cadeira de rodas, ir definhando, tendo os membros atrofiados, não reconhecer a família. Isso é mesmo muito duro". Ela também diz que não se sente culpada e que tenta não pensar no amanhã porque, se fizesse isso, não teria forças para cuidar da Natally. "Vivo cada dia como se fosse o último. Faço com que ela se sinta bem, feliz e amada. Sei que não é um amanhã bom. É por não pensar no amanhã que não entro em depressão, acho. Evitar pensar no amanhã me faz sofrer menos. Cada dia para ela é algo novo, para mim também. Hoje, sou os olhos, as pernas e até o ar que ela respira, pois se ela baquear, se acontecer qualquer coisa, eu que terei de fazer o primeiro socorro, como já ocorreu muitas vezes", finaliza Fabiana.

Fabiana com a filha Natally 

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Dicas da psicóloga Elaine Siervo para mães que possuem filhos doentes e que precisam se dedicar 100% a essas crianças:

- Procurar por um tratamento psicológico para ela mulher, trabalhar não apenas o lado mãe, mas também o de esposa, o profissional, etc. - Delegar tarefas para a família nuclear e a extensa (aquela que vai além do lar) - Buscar toda ajuda de profissionais que ela puder. Aparelhos e recursos - público e particular (se a família tiver condições) - Tirar um tempo para fazer algo que gosta, atividade física, encontrar amigas, que faça seus olhos brilharem. - Não se colocar no papel de mártir, é positivo pedir ajuda. - Eliminar a culpa de sua vida. - Viver os outros papeis de sua vida: filha, esposa, profissional. Mesmo sem a terapia, procurar essas outras facetas de sua vida.

A psicóloga Elaine Siervo. Foto: Sérgio Freitas

Sugestões de pauta e comentários podem ser encaminhados para o e-mail familiaplural@estadao.com.

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