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Porque somos todos iguais na diferença

Irmã mais velha ganha guarda definitiva da mais nova e torna-se "irmãe"

Por Claudia Pereira
Atualização:

Fernanda Ferreira passou ser a responsável legal de Isabella após histórico de abuso familiar se repetir com a irmã menor

Em muitas famílias, parece que o irmão mais velho já nasce com um estigma: cuidar dos menores. Quando os pais saem para o trabalho ou se ausentam por qualquer outro motivo, quase sempre lançam a seguinte frase para o primogênito: cuida do seu (seus) irmão (ãos) menor (es). Ou, você é o maior, precisa dar o exemplo. O cuidado oferecido pelo irmão mais velho ao menor e a responsabilidade dada a ele pelos pais podem ser positivos desde que isso não comece a interferir em suas atividades diárias de criança/adolescente e, acima de tudo, de filho. Afinal, não é responsabilidade do primogênito assumir responsabilidades de formação/criação de um outro ser. De acordo com Elaine Siervo, psicóloga com especialização em sistêmica familiar, há um grande risco para diversos problemas dentro de uma situação como esta. "Se a criança ou adolescente assume, precocemente, os serviços da casa e o cuidado com os irmãos, isso pode levá-lo a ter um rendimento escolar muito ruim, gerando desmotivação com os estudos e até o abandono escolar." Outro ponto é quando o irmão mais velho deixa de fazer algo que gosta porque precisa se ocupar do mais novo.

 

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A psicóloga aponta algumas causas que levam os irmãos mais velhos a se "encarregarem" da tarefa de cuidar dos menores: 1. Família de pais adolescentes principalmente as monoparentais (mãe solo adolescente) 2. Famílias com um dos genitores com doença mental ou física incapacitante 3. Famílias com um dos pais, ou ambos, usuários de álcool e drogas 4. Famílias com um grande número de filhos e condições financeiras ruins em que, geralmente, os mais velhos ajudam a criar os mais novos A profissional diz ainda que vários fatores vão determinar o tamanho do impacto que isso pode causar na criança ou no adolescente com responsabilidade precoce. A ser levado em conta "o grau e a qualidade de troca afetiva entre pais e filhos, a forma com que é cobrada essa responsabilidade, que pode ser uma exigência, uma negociação, ou um pedido de ajuda aos filhos".

Uma história de abusos físicos e psicológicos

A história de Fernanda Ferreira e de sua irmã Isabella, provavelmente, se enquadra nos itens dois e três apontados pela psicóloga Elaine Siervo. As duas possuem a mesma mãe biológica e, mesmo com uma grande diferença de idade - 29 e 10 anos, respectivamente -, tiveram uma infância muito parecida, com abusos e inadimplência por parte da progenitora. Quando engravidou de Fernanda, Claudia tinha 19 anos e a gravidez foi fruto de uma única saída com um colega de classe, que tinha 17. Sem poder provar que o rapaz era, de fato, o pai, assim que Fernanda nasceu foi entregue aos avós maternos. Mesmo vivendo com os pais e podendo acompanhar o crescimento da filha, Claudia deu a eles a guarda judicial definitiva da criança. Fernanda relata que até os seus 5 anos de idade, a mãe sempre estava ausente, em festas, e acabou se envolvendo com drogas. Foi internada pelos pais em uma clínica de reabilitação, onde conheceu seu primeiro marido, padrasto de Fernanda. Quando ela completou 6 anos, a mãe já estava fora da clínica e queria que Fernanda fosse viver com ela e seu marido. "Minha avó não queria que eu fosse, pois minha mãe tinha transtorno bipolar e, além disso, não tinha muito discernimento das coisas." Após mãe e filha insistirem que queriam ficar juntas, os pais de Claudia a deixaram levar Fernanda. "Lembro que passei a viver muito solta, fazia o que queria. Um dia disse que não queria mais ir para a escola e minha mãe deixou. Eu não tinha roupa limpa para usar. Até que um dia, minha avó me pegou de volta, mas eu queria voltar para minha mãe, ela fazia muitos jogos psicológicos."

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As irmãs Isabella e Fernanda 

Depois de um período vivendo novamente na casa da avó, Fernanda disse que queria voltar para a mãe. Então, aos 8 anos, saiu da casa dos avós pela segunda vez. Claudia e o marido pegaram todas as coisas e se mudaram para o Rio de Janeiro. Segundo Fernanda, ali começou o seu pesadelo. O padrasto passou a bater muito nela, e por motivos que iam desde ter feito uma lição de casa errada até acordar fora do horário estipulado por eles. "Aquilo era errado e minha mãe não percebia isso." Depois do Rio, a família se mudou para Búzios e, meses depois, para Cabo Frio. Quando tinha 12 anos, Fernanda convenceu a mãe - que havia deixado de falar com os pais desde que saíra de São Paulo - a deixá-la passar as férias na casa dos avós. "Sentei com minha avó e disse que queria voltar. Contei que tinha perdido mais um ano de escola e que apanhava muito. Meus avós não me deixaram mais voltar para Cabo Frio. Eu não tinha nada lá, nem roupas, nem brinquedos, nada." Depois de 7 anos sem falar com a mãe, ela reaparece. Disse que havia se separado do padrasto de Fernanda, mas que estava grávida de uma outra relação que teve na sequência. "Fiquei com medo de Isabella passar por tudo o que passei, mas o fato de ela não estar mais com meu ex-padrasto me tranquilizou."

A história se repete

Porém, quando Isabella completou 4 anos, Claudia foi viver com um novo companheiro. Ambos abusavam de álcool e drogas e a história de Fernando passou a se repetir com Isabella, que começou a apanhar muito do padrasto. Nessa época, a família vivia em Minas, e os avós maternos não sabiam o que se passava. "Minha mãe sempre quis manter distância para que ninguém se metesse em sua vida." De acordo com Fernanda, quando a mãe não sabia o que fazer com Isabella, ligava para ela. "Até para dar bronca na Isa a minha mãe me ligava." Aos 5 anos, a irmã menor chegou a fugir de casa. "Minha mãe me ligou desesperada. Quando encontraram a Isa, disse para minha mãe que queria falar com ela. Então, ela contou que os pais a deixaram sozinha em casa e que ela saiu para procurá-los. Nessa conversa, disse que queria morar comigo, pois achava que ninguém a amava." Nesta época, Fernanda estava com 24 anos. "Falei para minha mãe que, quando eu tivesse minha casa, eu queria que a Isa viesse morar comigo."

Tornando-se "irmãe"

Uma noite, quando Isabella já estava com 7 anos, Fernanda recebeu uma ligação tarde da noite. Era a cunhada de sua mãe contando que o conselho tutelar estava lá, e que Claudia havia perdido a guarda da filha menor. Tudo por conta de uma ameaça que fez ao marido, que queria deixá-la. "Ela disse que, se ele a deixasse, se mataria e mataria também minha irmã." Segundo Fernanda, a cunhada da mãe ouviu as ameaças de Claudia, que estava alterada e sob o efeito de álcool, e chamou a polícia e o conselho tutelar. Isabella passou a noite na casa desta cunhada e, na manhã seguinte, Fernanda chegou a Minas Gerais para resolver a situação. "Avisei meus avós, que disseram que iriam junto para pedir a guarda da Isa. Eu disse que não, que quem ia pedir a guarda seria eu."

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Isabella já sob os cuidados da irmã 

Fernanda relata que foi ao conselho tutelar, onde recebeu a informação de que a mãe precisaria autorizá-la a ficar com a irmã menor para que eles pudessem dar a guarda provisória. "Fui até a casa dela para falar da decisão. Não conseguia parar de chorar com o estado do local. Tudo sujo, largado, ninho de bicho dentro da casa. Minha mãe tinha ingerido remédios com álcool, tentando se matar. Ela estava totalmente alterada, não me reconhecia. Eu a levei para o hospital, onde fizeram uma lavagem estomacal. Em determinada momento, ela me reconheceu. Perguntei se eu poderia levar a Isa comigo para São Paulo e ela concordou." Assim, Fernanda ganhou a guarda provisória da irmã menor. Nesse meio tempo, Claudia reatou com seu companheiro, o padrasto de Isabella. "Ela ligava para dizer que eu tinha armado tudo aquilo para tirar a Isabella dela. A Isa passou a não querer mais falar com nossa mãe e eu disse a ela que, se fizesse os mesmos jogos psicológicos que havia feito comigo, eu teria de conversar com a Justiça. Então, todas as vezes que ela falava com a Isa, eu gravava as ligações." Há três anos e meio, Fernanda é a "irmãe" de Isabella, sua irmã caçula.

Um novo capítulo

Quando começou um relacionamento com Daniel, Fernanda falou logo de cara que, se ele não aceitasse sua irmã, eles não poderiam seguir adiante. Hoje, são noivos e, juntos, cuidam da pequena Isabella. No Natal de 2015, Fernanda ganhou a guarda definitiva da irmã. "Nossa relação é um misto de mãe e irmã, mas hoje eu a enxergo muito mais como filha." Com Daniel, Fernanda diz que se dão muito bem. "São inseparáveis, e, na maior parte das vezes, ela o chama de pai."

Recomeço: Daniel, Fernanda e Isabella 

Difícil julgar se é ou não uma atitude correta por parte dos pais lançar esta responsabilidade para os filhos, pois depende muito da configuração e das necessidades de cada lar. Há irmãos mais velhos que, hoje, na fase adulta, dizem que o fato de ter cuidado dos menores foi positivo, que os fez amadurecer e se prepararem para a vida. Já outros comentam que a responsabilidade precoce fez com que perdessem bons momentos da infância/adolescência. No caso de Fernanda, que já era adulta quando ganhou a guarda da irmã, como ela diz, "tenho muito amor pela Isa, por isso não acho um ato de nobreza. Eu a vi nascer, dar os primeiros passos. Desde que nasceu tive esse lado irmã-mãe com ela." E você? Se encaixa em algumas dessas situações? Conta pra gente. Comentários e sugestões de pauta podem ser encaminhados para os e-mails familiaplural@estadao.com e familiaplural@gmail.com Acompanhe a gente também no Facebook: @familiaplural

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