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Um blog de pai para filha

Não Sei

Eu dirijo, enquanto você atrás, sentada em sua cadeirinha, procura com o que se entreter pela janela. No rádio, Being Boring do Pet Shop Boys. Pela Marginal Tietê (ou Pinheiros), papai canta e administra olhadelas para checar se tudo ok contigo. E tudo ok, até que: -Aaaaaaahhhhh, ahhhh, aaaaaaahhhh, aah, aaaaaaahhh!!!

Por Victor Sá
Atualização:

Trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=hlbt97rJY1A

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-Que foi? Que foi, pequena? -Aaaaaaaahhh!

Você apenas grita. Sem lágrimas, sem espanto, sem terror, quase até sem emoção. Com a boquinha aberta grita parando apenas pra colher oxigênio.

-Aaaah, ah-ah-ah-aaaaaahhh! -O que tá acontecendo, pequena?? Fala pro papai? Por que cê tá gritando?! -Não sei! -Como não sabe? -Não sei, nãaaaaao sei, não-sei -não -sei-não-sei! Não..........sei! Aaaaaaah! -Tá, para. Chega. Quer tirar o gorrinho? Tá meio quente mesmo, vamos tirar? -Táaaaaaaaahhhhh -Papai vai tirar o seu gorro, calma. Espera.

A 50 km/h, solto a mão direita do volante (e mantenho a esquerda). Sem olhar pra trás, tateio seu rostinho até chegar ao gorro de lã. Agarro a bolinha que fica em cima da cabeça e puxo. Olho rapidamente para você que descabelada dá um esboço de sorriso. Comemoro minha façanha e a certeza de problema resolvido. Mas:

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-Ahhhhhhhhh, gorrinho, papai, meu! Gorrinho, papai! -Cê quer o gorrinho de volta? Mas cê não tinha dito que queria tirar? -Não, papai. Meu, papai. Meu gorrinho. Meu! Aaaaaahhhh! -Tá bom, tá bom! Coloca de volta. Mas você vai ter que fazer sozinha, papai não pode te ajudar agora.

Jogo o gorrinho no seu colo. Você grita mais um pouquinho até que para e estuda o gorrinho. Com as duas mãos enterra ele em sua cabeça. Depois, ajeita descobrindo os olhos. Perfeito. Eu vibro, "Uhuuul, você conseguiu". Não te conto que está do avesso.

-Pronto, pequena. Parabéns. Agora sossega. -Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhh -Que foi agora, meu deus?! -Não-sei. Nãaaaaaaaaaaao sei. Não sei. Aaaaaaaaaaaaaaaaah, não-sei-não-sei-não-sei. -Como assim não sabe? -Não seeeeeeeeeeeeeeiiiiii Não! Sei! Não, não, não seiiiiii Aaaahhhhh.

Bastante irritado saio da Marginal Pinheiros (ou Tietê). Finalmente um farol vermelho. Um motorista no carro ao lado me chama,

-Amigo, sabe se a ponte do Limão fica pra lá ou pra cá?

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Eu olho para ele, olho para você (que ainda grita), respiro fundo e respondo:

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-Não, parça. Eu não sei. Não tenho ideia. Na real, não sei nem se aquela é a Marginal Pinheiros ou a Tietê. Eu só chamo de Marginal. Nunca soube diferenciar. Eu também nunca sei quando saio de uma estação de metrô de que lado vai dar. Mesmo descendo na mesma estação por anos, cada dia um chute novo. Não sei a ordem dos meses também, mano. Nunca decorei quando pivete e meio que nunca resolvi. Qual vem primeiro, junho ou julho? Qual é o das férias escolares? Ou porque dezembro não é mês dez, novembro nove e assim por diante? Eu não sei nada disso. Mas muito pior: eu não tenho a mais puta ideia do que tô fazendo com minha vida. Tá vendo essa menina aí atrás? É minha filha. Ela não para de gritar e não sabe o motivo. Eu também não sei. Ninguém sabe, né? Cê sabe?

Nesse ponto, o farol já está aberto, o motorista vizinho segue atrás da ponte do Limão e eu, sob o barulho de buzinas, continuo o monólogo, agora direcionado a você:

-Eu queria poder te dizer que com o tempo você vai saber. Vai saber por que grita, o que quer, como quer. Mas a real, pequena, é que eu, com 30 anos ainda não sei também. A vida foi acontecendo e eu fui resolvendo, sem planos, sem ideia, sem saber. Não sei qual o sentido disso tudo, o motivo de estarmos aqui, o que tem depois, se é que tem. Não sei como resolver o tédio, o vazio inerente a existência e a absoluta falta de sentido. Não sei resolver a equação "muito trabalho/pouca grana". Não sei lidar com bancos, planos de saúde e festas da firma. Não sei ser adulto. Nunca quis ser um, e não tenho a menor ideia de como faz. Não sei se o peso de meus fracassos vai um dia cair sobre você, minha pequena. Não sei se serei um bom exemplo. Não sei ser adulto. Tá, eu já disse isso. Mas é que eu não sei mesmo. Não sei se sou um bom pai. Não sei como viver de maneira mais saudável, como resolver as neuroses, ser mais leve. Não sei como te ajudar a ver toda a beleza que é possível na vida. Não sei nada do novo acordo ortográfico, só que "ideia" perdeu o acento. O que seria ok, se eu soubesse tudo do antigo acordo ortográfico, mas não. Eu não sei nada sobre nenhum desses acordos que fazem por aí. Não sei como funcionam esses esquemas de corrupção que leio a respeito ou como funciona uma offshore. E nem sei quando estou sendo passado pra trás. Não sei fazer o número três com a mão, o dedinho sempre escapa do dedão (é bizarro, tô ligado, mas nunca consegui). Não sei a tabuada de quase nenhum número, exceto, talvez, a do cinco. Também não sei me comportar, não sei o que quero, não sei escolher. Nunca sei como reagir de maneira adequada as situações que surgem, sempre erro. Não sei como te ensinar o que não sei. Eu não sei, minha pequena... Aaaaaahhhhhhh!

E assim, seguimos os dois gritando por uma paralela `a Marginal Tietê (ou Pinheiros).

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Notei que agora você ria. O porquê, eu não sei.

Aaaaaaamor, Papaaaaaai.

02.06.16

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