PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Um blog de pai para filha

Sobre farmácia, amor e bibocas

conseguimos ter a exata dimensão do tamanho da coisa em tempo real e quase sentir tudo mudando. Podemos chamar isso de epifania, talvez. Foi assim quando você nasceu. E foi assim, nessa historinha que te conto agora

Por Victor Sá
Atualização:
Arte: André Bonani Foto: Estadão

Pequenina,

PUBLICIDADE

Muitas vezes, apenas o tempo nos faz perceber como nossas vidas são tocadas por instantes definitivos e que na hora podem passar despercebidos. É necessário distanciamento para entender, para a ficha cair. Porém, outras vezes, rola o contrário e conseguimos ter a exata dimensão do tamanho da coisa em tempo real e quase sentir tudo mudando. Podemos chamar isso de epifania, talvez. Foi assim quando você nasceu. E foi assim, nessa historinha que te conto agora.

Nem é uma história exatamente romântica, você vai ver. Romance, amor, e tantas outras experiências, dependem muito mais de sua leitura, do significado que você dá, do que dos fatos em si. Por exemplo, essa noite de uns 4 ou 3 anos atrás:

Trilha sugerida: https://www.youtube.com/watch?v=wl2rKUdtlZs

Saímos, eu e ela, do cinema. Era noite de virada cultural e nós optamos por fugir dos grandes shows e fazer o roteiro filmes. Assistimos a uma sessão (não consigo lembrar qual. Talvez ela saiba) e corremos para outro cinema próximo, como sempre, atrasados. Era um filme com a trilha sonora tocada ao vivo por uma orquestra. Coisa fina e chance única. Por isso corríamos e me irritei quando tivemos que parar na farmácia (não lembro bem o motivo. Uma vez mais, talvez ela lembre).

Publicidade

Em direção ao caixa, vimos uma senhorinha com roupas maltrapilhas que contrastavam com a asséptica farmácia. Um segurança pegou a senhora pelo braço de maneira agressiva e começaram a brigar. Logo, entendemos que ela tinha roubado um frasco grande de shampoo. O segurança, muito bravo, não deixava a desesperada senhorinha ir embora.

Eu confesso que não dei lá tanta importância ao que ocorria. Fiquei ligeiramente incomodado, mas seguia com minha pressa. Já minha companheira não teve dúvidas e se meteu na discussão. Argumentou em favor da velha senhora. Tentou explicar ao segurança que ela estava visivelmente arrependida, que era só deixá-la ir e que ninguém mereceria ser preso por tão pouco.

O segurança disse que a decisão era da polícia que estava pra chegar. A mulher começou a chorar sobre filhos e netos que dependiam dela. O segurança não se comoveu. Então, em um breve descuido do homem de terno, a senhora conseguiu se desvencilhar. O segurança a agarrou e ambos caíram no chão. Não sei bem como, mas quando vi, minha companheira também estava no chão.

Por uns dois segundos, fiquei ali, meio perplexo vendo minha doce companheira atracada no chão com um segurança duas vezes maior.

E foi naquele instante, minha pequena. Naquele momento, eu soube. É, o amor às vezes acontece em uma praia ao pôr do sol ou em um chalé nas montanhas. Mas para nós (pelo menos para mim) aconteceu no meio de uma treta meio tragicômica, meio pastelão, no chão frio de uma farmácia de São Paulo.

Publicidade

Obviamente que após esse momento mágico, me juntei aos três e tentei como pude ajudar as duas. Conseguimos livrar a senhorinha que atravessou a rua e fugiu.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Tentávamos nos recompor. O segurança arrumou terno e gravata ainda muito bravo conosco. Eu só queria ir embora e tentei colocar panos quentes. Me despedi argumentando que ele tinha feito o trabalho dele e impediu o furto. Aquela senhora nunca mais iria voltar, disse. Estava tudo certo. Não sei se ele se convenceu, mas seguimos. Perdemos o filme e eu não compartilhei nada do que senti.

Essa mina que não hesita em comprar briga, que se joga (às vezes, literalmente) para defender o que acredita, essa mina zica é sua mãe, minha pequena Espero sinceramente que você herde dela a coragem e o peito aberto em amar e mudar as coisas.

Ontem, foi aniversário dela. Marcamos em um restaurante chique, vestimos roupas bonitas e fomos comemorar. Notamos que o pico vizinho e meio tosco estava completamente vazio. Sua mãe insistiu para comermos lá. Ela alegou que o dono do lugar devia precisar de uma força. Provavelmente estava falindo sem conseguir competir com o restaurante moderno e hypado na mesma rua. Defendeu que a birosca só precisava de uma chance e que se as pessoas nos vissem comendo lá talvez também entrassem.

Assim é sua mãe. Me fazendo comer em tudo que é biboca questionável de São Paulo há mais de quatro anos.

Publicidade

Eu sei, amorinha, em nenhum dos casos citados estávamos mudando o mundo ou qualquer coisa. Mas sei também que a mamãe diariamente, enquanto cuida de você e trabalha, está na luta sim por um mundo melhor.

É isso, pequena, lute como uma menina. Lute como a mamãe.

amor,

Papai. 20.10.16

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.