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Novidades e reflexões sobre psicologia, psicanálise e neurociência

Inveja, o olhar que dói

Processada na mesma região do cérebro onde a dor física é decodificada, esse poderoso sentimento tem chamado a atenção de psicólogos e neurocientistas que começam a se dedicar a estudar suas nuances com mais profundidade. Entre os sete pecados capitais, a inveja ocupa posição singular: nunca é que não confere sensação de poder (ainda que falsa), como a ira; tampouco é ?divertida?, como a gula ou a luxúria, por exemplo, que têm seu apelo calcado em algum tipo de satisfação

Por glaufleal
Atualização:

Há alguns anos era raro andar pelas ruas das grandes cidades sem ver carros onde estivesse colado no vidro traseiro um adesivo com a frase: "A inveja é uma m...". Faz sentido: inveja dói. E essa não é só uma força de expressão para falar do sofrimento psíquico. O prazer despertado pelo sofrimento alheio também tem lugar exatamente onde se processa a sensação de prazer. E não invejamos qualquer pessoa, indiscriminadamente, e sim aqueles em quem vemos características semelhantes às nossas, como gênero, idade e profissão.

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Na maior parte do tempo, mesmo sem nos darmos conta desse movimento psíquico, nos comparamos aos nossos semelhantes e, quando "perdemos a competição", nos sentimos lesados - vem então a raiva e, em certos casos, a vontade de prejudicar aquele que recebeu benefícios, talvez com fofocas ou comentários maldosos, por exemplo. Na melhor das hipóteses, com pensamentos destrutivos. Se o invejado se dá mal, é provável que nos venha à mente, mesmo que de forma furtiva, a expressão "bem feito". E, por alguns momentos, é possível experimentar mais satisfação com o sofrimento alheio que com nossas próprias conquistas - que parecem diminuídas, impregnadas por esse olhar contaminado. A palavra "inveja" tem origem no vocábulo latino

invidia

- in

, negativo, ruim e

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videre

, ver, o que resulta em "olhar com maus olhos". Não por acaso o sentimento está associado ao desconforto, à sensação de inferioridade e ao desejo de que o outro não tenha aquilo de que nos julgamos privados. Esse aspecto desperta o que há de pior: a revolta causada por aquilo que outra pessoa tem - sejam bens materiais, sucesso, benefícios ou felicidade. É compreensível, portanto, que pareça tão difícil admitir essa característica. E, despeito dessa dificuldade - salvo raríssimas e privilegiadas exceções - somos seres invejosos. Muitas vezes esse poderoso sentimento é acordado pela dor de ocupar uma posição inferior àquela que almejamos ou por querer o que é do outro. Esse desejo intenso pode ser direcionado tanto para uma reluzente Ferrari vermelha, como para uma conquista de trabalho ou ainda para uma característica física ou capacidade, como a de falar bem em público. Entre os sete pecados capitais, a inveja ocupa uma posição singular: nunca é que não confere sensação de poder (ainda que falsa), como a ira; tampouco é "divertida", como a gula ou a luxúria, por exemplo, que têm seu apelo calcado em algum tipo de satisfação. O curioso é que esse sentimento tem chamado a atenção de psicólogos e neurocientistas que começam a se dedicar a estudar suas nuances com mais profundidade. O neurocientista japonês Hidehiko Takahashi, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência Radiológica, em Tóquio, conduziu um estudo sobre o desconforto mental que o sucesso alheio nos causa, com base em correlações neurais, publicado pela

Science

. Usando ressonância magnética, ele examinou o cérebro de 19 voluntários (dez homens e nove mulheres) na faixa etária dos 20 anos e identificou o lugar onde esses sentimentos são processados: a região do córtex cingulado anterior é ativada - a mesma região onde a dor física é decodificada. Ou seja, a inveja realmente é uma emoção dolorosa. As várias manifestações e intensidades da inveja fazem parte do dia a dia e são, com alguma frequência, explicitadas nas artes e na cultura. Numa passagem bíblica clássica, o invejoso Caim, filho de Adão e Eva, mata Abel, seu próprio irmão. Na Antiguidade, o filósofo grego Sócrates a considerava "a úlcera da alma". Em

Otelo

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, de William Shakespeare, o sentimento move o personagem Iago a destruir o protagonista. Na

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Divina comédia

, Dante Alighieri descreve com detalhes como almas carregadas de ressentimento por aquilo que não desfrutaram marcham pelo purgatório com as pálpebras fechadas para nunca mais verem o mundo através de "olhos invejosos". Este, aliás, sente-se profundamente ferido, excluído de um direito que, segundo acredita, é (ou deveria ser) seu - e seu cérebro registra essa experiência como um sofrimento físico. Uma das formas saudáveis de lidar com a inveja é nos concentrarmos nos aspectos que controlamos de uma situação. Por exemplo, se o sucesso de um conhecido desperta demasiadamente sua atenção, procure focar em suas próprias metas. Se não encontrar motivação suficiente, tente buscar sentimentos de gratidão pelas coisas boas que tem em sua própria vida. Olhar para o que temos (e não para o que nos falta) pode nos ajudar a valorizar oportunidades. Seria ótimo se todo mundo pudesse, pelo menos na maior parte do tempo, desfrutar "da dor e da delícia" de ser quem somos. Ok, não é tão simples assim: a saída para o desconforto que a inveja causa requer a determinação de cultivar a capacidade de alegrar-se, verdadeiramente, pelos dotes ou conquistas alheios. A grande vantagem disso é, ao mesmo tempo, agregar a possibilidade de tomarmos o outro como exemplo, sem deixar de lado nossos próprios pontos fortes. E, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não se trata de engrandecer ainda mais o invejado, mas sim de usufruir de alegrias e realizações - e aprender com elas, sem permitir que o sucesso alheio se torne motivo de tormento.

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