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Novidades e reflexões sobre psicologia, psicanálise e neurociência

Quando a ?mania? vira doença

O limite entre os hábitos sem grandes consequências e a compulsão ? de limpar, contar, colecionar ou mesmo evitar determinadas situações ? pode ser bastante tênue e nem sempre claramente perceptível. Em suas manifestações mais graves, o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), que atinge mais 3 milhões no Brasil, impede as pessoas de levar uma vida saudável e produtiva. Embora existam tratamentos, a vergonha de pedir ajuda pode condenar muita gente a uma vida de sofrimento e exclusão

Por glaufleal
Atualização:

Todo mundo tem suas esquisitices. Faz as coisas de um determinado jeito ? e sofre quando não pode seguir seu ritual particular. Que atire a primeira pedra quem não volta pelo menos uma vez para checar se de fato desligou algum aparelho ou fechou uma porta. Ou que não faça questão de se sentar em determinado lugar do sofá, à mesa ou mesmo beber numa caneca específica, ainda que outras tantas guardadas dentro do armário possam cumprir exatamente a mesma função. Não é por acaso que desenvolvemos hábitos. Entre outras coisas, eles nos protegem da hostilidade do novo, nos garantem o aparente aconchego de determinadas rotinas e a ilusão do controle e da permanência. Na verdade, os pensamentos intrusivos fazem parte da atividade psíquica de pessoas saudáveis. Para algumas, no entanto, são vistos como sinais de perigo. Nesses casos, ideias obsessivas ganham espaço e para ?contê-las?, surgem compulsões ? de limpar, contar, colecionar, fazer determinados gestos. Há também os comportamentos de evitação. Às vezes, torna-se impensável tocar em maçanetas ?contaminadas?, por exemplo, ou pisar em ladrilhos de qualquer cor ? lembra-se do personagem de Jack Nicholson no filme Melhor impossível? O problema é que o limite entre o que é aceitável e os comportamentos que fogem ao controle (chegando mesmo a tornar a pessoa incapaz de cuidar da própria vida) podem não ser tão claros nem para quem sofre com o problema, nem para aqueles que estão por perto. Fortes inclinações ao perfeccionismo e ao isolamento podem indicar tendências ao transtorno obsessivo-compulsivo, o TOC ? ou neurose obsessiva, como foi denominada por Freud. Acompanhei de perto uma situação assim. Chamo de ?o caso da moça presa em si mesma?. Ainda na infância, ela apresentava algumas ?manias?. Na escola, era sempre a última a terminar as lições. Na hora de brincar arrumava de forma tão minuciosa e lenta os brinquedos que, quando tudo finalmente parecia milimetricamente organizado na casinha de bonecas ou na mesinha onde seria servido o chá em xícaras de plástico, já era hora de encerrar a brincadeira. Durante a adolescência, desenvolveu hábitos exagerados de higiene: mantinha as unhas curtíssimas, a ponto de os dedos ficarem doloridos, para evitar o acúmulo de microorganismos; lavava as mãos várias vezes ao dia, chegando a feri-las, tamanho vigor com que as esfregava. E seus banhos nunca demoravam menos de uma hora. A família acostumou-se. Afinal, era uma pessoa alegre, simpática e prestativa ? embora, não raro, se preocupasse em excesso com a opinião alheia e subestimasse os próprios talentos ? e levava uma vida aparentemente normal, trabalhando, estudando e namorando. Após um noivado e a demissão do emprego, quando tinha 30 anos, adoeceu. Um problema cutâneo que lhe causava erupções, diagnosticado como reação ao estresse, fez com que permanecesse em casa por meses a fio. As inflamações na pele sumiram, mas ela nunca mais saiu. Intensificou os rituais de limpeza, passou a acumular embalagens dos mais diversos produtos e a rezar compulsivamente, temendo que se não fizesse isso alguma grande desgraça aconteceria. Há 13 anos vive enclausurada. Não trabalha, não passeia nem recebe visitas, não atende ao telefone e proíbe que a irmã, com quem mora, o faça. Não resolve problemas burocráticos, não corta os cabelos, não vai ao dentista e, por conta disso, sofre com cáries e outros problemas. Tem vergonha da situação ? mas não se anima a procurar ajuda. Parentes e amigos (que de todas as formas já tentaram inutilmente fazê-la procurar tratamento), sentem-se impotentes e lamentam que uma pessoa tão doce e inteligente viva enclausurada em si mesma, de forma tão miserável. Histórias similares a essa, infelizmente, não são tão raras. Estima-se que no Brasil mais de 3 milhões de pessoas sofram com os sintomas do TOC. Mas o número pode ser bem maior, já que grande parte das pessoas não procura ajuda. Profissionais das diferentes abordagens da saúde mental ? médicos, psicólogos e psicanalistas ? consideram a patologia sob prismas diversos. Mas a maioria concorda que as torturantes manifestações do distúrbio podem ser tratadas com medicamentos, psicoterapia ? e hoje já se considera a até possibilidade de intervenção cirúrgica em áreas cerebrais hiperativadas de pacientes que não respondem a outras abordagens. A denominação transtorno obsessivo-compulsivo vem da psiquiatria. Muito antes da adoção dessa classificação, porém, a patologia já aparecia como neurose obsessiva em textos freudianos. O tema é apresentado em artigos como As psiconeuroses de defesa (1894), Rascunho K (Correspondência com Fliess) (1895), Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa (1896), Caráter e erotismo anal (1908), Totem e tabu (1912), Predisposição à neurose obsessiva (1913), Inibições, sintomas e ansiedade (1926), entre outros. No caso clínico conhecido como Homem dos Ratos, Freud diz que o erotismo anal domina a organização sexual do neurótico obsessivo, tendo como sustentação o ódio inconsciente e primitivo. O olhar psicanalítico diverge da compreensão preponderantemente médica ou comportamental, tanto em relação à etiologia quanto à maneira de conduzir o tratamento do transtorno. Para a psicanálise, a neurose obsessiva compulsiva tem como origem um conflito psíquico infantil e uma fixação da libido ocorrida nos primeiros anos de vida. A proposta não é, portanto, simplesmente eliminar os sintomas ? embora seja esperado que isso se dê ao longo do acompanhamento terapêutico ?, mas sim compreender seus sentidos e desdobramentos. Psicanalistas acreditam que sintomas escondem/revelam conflitos inconscientes. Sua manifestação resulta de um ?trabalho psíquico? que tem o objetivo defensivo de transformar uma forte representação da experiência infantil em outra ? mais suportável, enfraquecida e controlável, desligada (por meio desse estratagema) de sua verdadeira e dolorosa fonte. Em 1907, no texto Atos obsessivos e práticas religiosas, Freud escreveu: ?A neurose obsessiva parece uma caricatura, ao mesmo tempo cômica e triste, de uma religião particular?. Mais adiante, na mesma obra, complementou: ?Podemos atrever-nos a considerar a neurose obsessiva o correlato patológico da formação de uma religião, descrevendo a neurose como uma religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva universal?. A comparação se dá por causa dos cerimoniais que aparecem tanto na sintomatologia daqueles que sofrem de ?afecções nervosas? quanto nas ?práticas pelas quais o crente expressa sua devoção?. Tanto nos rituais neuróticos quanto nos rituais sagrados se observam proibições compulsivas e fortes escrúpulos de consciência. ?Além do mais, em ambos os casos, os atos levados a cabo são prenhes de um sentido simbólico que expressa a experiência psíquica daquele que os realiza. Em geral, a força da pulsão recalcada é vivida como uma tentação perigosa, contra a qual o sujeito deve cercar-se de medidas de proteção. Na neurose obsessiva os sintomas ? ações obsessivas ? são, assim, uma formação cujo objetivo é conciliar moções pulsionais antagônicas, vividas como forças que induzem a atos contraditórios?, escreve o psicanalista Flávio Carvalho Ferraz, no artigo ?A ?religião particular? do neurótico: notas comparativas sobre a neurose obsessiva e a perversão?, publicado em Obsessiva neurose, organizado por Manoel Tosta Berlink. Atualmente, por sua interferência nas relações pessoais e pelo impacto na rotina doméstica, o TOC tende a ser considerado um distúrbio familiar, já que leva as pessoas próximas a se adaptar aos sintomas e, de certa forma, também adoecer. Quando penso no quadro, me ocorre uma associação: TOC remete a toque, contato, aproximação, mas o que pessoas com esses sintomas vivem é justamente o afastamento ? em especial delas próprias, de um mundo interno que julgam tão cruel e assustador. Quem dera pudessem buscar ajuda para pelo menos se dar a chance de experimentar trilhar um caminho de volta para si mesmos e para os que os querem bem...

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