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Novidades e reflexões sobre psicologia, psicanálise e neurociência

Quem dera fosse todo mundo igual a mim...

Bem lá no fundo cultivamos a crença de que a vida seria mais fácil se as pessoas pensassem como nós, sentissem como nós, acreditassem nas mesmas coisas que nós... O que estudos nas áreas de psicologia social e sociologia mostram, porém, é que se suportamos o desconforto inicial da diferença temos muito a ganhar, não só afetivamente, mas também do ponto de vista cognitivo. Em outras palavras, a diversidade nos torna mais inteligentes

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Por glaufleal
Atualização:

O outro incomoda. Independentemente de quem seja o "outro" da vez - o motorista que nos fecha no trânsito, um amigo que tem opinião divergente, o chefe que faz solicitações a nosso ver pouco adequadas, o companheiro (ou a companheira) que insiste em ter prioridades diferentes das nossas. Não importa. Bem instalados no centro de nosso próprio narcisismo, o que gostaríamos mesmo é que as outras pessoas pensassem como pensamos, sentissem como sentimos, desejassem da mesma maneira que nós, acreditassem nas mesmas coisas... Obviamente admitir isso não é nem um pouco politicamente correto - mas quem disse que psiquismo liga para essas coisas?

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Felizmente, aspectos mais evoluídos de nossa mente são capaz de reconhecer que, embora passemos a vida nos rebelando contra a diversidade, é nela que nos constituímos. A diferença atrai, mas em geral o que prevalece é o incômodo que causa - a ponto de, em muitos casos, suscitar o ódio. Não por acaso, em 3 mil anos de civilização a história regista apenas 500 anos não contínuos de paz, ensina o jornalista Roberto Godoy, autoridade em guerras, mas em constante flete com a paz. "Mas é bom lembrar que o fato de não haver documentação precisa pode ocultar conflitos que se perderam", avisa. Recentemente, o ataque ao jornal

Charlie Hebdo

, em Paris, atraiu a indignação de milhões de pessoas em todo o planeta. Mas por mais importância, visibilidade e desdobramentos que o fato tenha, em vários níveis, a violência se soma a outras tantas menos comentadas. A falta de divulgação, porém, não faz menos dolorosa a destruição de tantas vidas. O fato é que dia após dia a intolerância transfigura-se em tragédia, marcada pela enorme dificuldade inerente à convivência entre aqueles que não só têm formas diversas de ser e estar no mundo, mas também expõe o fato de que, mesmo contra nossa vontade, a diferença é existe - seja na anatomia, no desejo, na pele, na crença, no afeto, na sexualidade ou na maneira de ser. No processo de constituição psíquica, o ódio aparece como elemento primordial. Na etimologia grega,

odeum

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significa "pequeno teatro" destinado a apresentações de música e declamação de poesias. Num primeiro momento essa ligação pode parecer disparatada, mas convém considerar que no lugar onde são dramatizadas as emoções mediadas pela arte, a presença do ódio é recorrente. Na origem latina,

odium

, refere-se a repugnância, aversão, evocando a ideia de repulsa e horror, acompanhada da certeza de que aquilo que provoca esse sentimento deve ser evitado. Possivelmente por isso o assunto merece pouca atenção. Não por acaso, o psicanalista Mauro Mendes Dias, autor do livro

Os ódios - Clínica e política do psicanalista

(Iluminuras, 2012) usa a palavra no plural. Seu intuito é justamente marcar a multiplicidade de maneiras de abordar e refletir sobre o assunto, tão complexo. Falar do ódio não parece fácil. Nos escritos de psicanálise, além de Freud - e com exceção de alguns autores como Jacques Hassoun em

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O obscuro objeto do ódio

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

, e Jacques Lacan, que articula o tema em vários momentos de sua obra, avançando na abordagem em seu

Seminário 20

-, parece não haver grande interesse nessa discussão. Não seria exagero supor que abordar o tema desperta algum mal-estar, já que o ódio é a mais arcaica testemunha da incompletude e do desconforto, antes mesmo que as palavras dessem forma ao sentir. Sua importância, porém, é grande. Constitutivo da noção de Outro (assim mesmo, com a primeira letra maiúscula, como propôs Jacques Lacan), de estrangeiro, de diferente, o ódio surge permeado por uma rede complexa de afetos. "A princípio, parece evidente que a questão do(s) ódio(s) seja, além de clínica, também política. Todas as patologias sociais ligadas ao fanatismo e à segregação exigem uma compreensão teórica dessa paixão 'triste', que ao lado do amor e da ignorância forma um conjunto que Jacques Lacan denominou 'paixões do ser'", escreve Maria Rita Kehl na apresentação do livro de Dias. Freud afirma que é mais antigo que o amor e que os dois não se acham numa relação simples de contraposição. Ele fala da rejeição primordial do mundo externo repleto de estímulos que incomodam o Eu: nas origens das relações está a expressão da repulsa primitiva. "O ódio está colocado antes porque logicamente é preciso considerar o Outro barrado que dá constituição ao sujeito, Outro esse que Freud alinha com o desprazer, como barra que atualiza a Lei da castração", assinala Dias. Sim, é difícil aceitar o outro (mesmo que com letra minúscula). Por isso fazemos tentativas de evitar, subestimar ou ignorar aquele que parece nos provocar com seu jeito diverso de ser e estar no mundo - uma maneira diluída (e disfarçada) de vivenciar o ódio. O que pesquisas na área de psicologia social e sociologia mostram, porém, é que se suportamos o desconforto inicial da diferença temos muito a ganhar, não só afetivamente, mas também do ponto de vista cognitivo. Em outras palavras, a diversidade nos torna mais inteligente.

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