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Novidades e reflexões sobre psicologia, psicanálise e neurociência

Quem você prefere matar?

Não se apresse em responder. Considere antes esse cenário clássico sobre decisão moral: você empurraria um estranho mal-encarado em direção aos trilhos de um trem desgovernado (o que certamente mataria essa pessoa) para salvar a vida de cinco trabalhadores mais adiante? Sua resposta seria a mesma se em vez do estranho fosse alguém que você ama? Ou se entre os trabalhadores estivesse o amor de sua vida, seu filho ou sua mãe?

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Por glaufleal
Atualização:

Pois é. A gente sabe que o mundo é complicado e somos seres complexos. Ainda assim, volta e meia, somos seduzidos pela armadilha simplista que nos faz dividir o mundo entre bons e maus. De um lado estaria o egoísmo, o desrespeito e a desonestidade como expressões da maldade. Do outro, a solidariedade, o altruísmo, a bondade. Os extremos, porém, estão mais próximos e mesclados do que seria confortável supor. O namorado carinhoso pode ter acessos furiosos de ciúme e dizer palavras ácidas. A mãe amorosa não está isenta de atos negligentes. Da mesma maneira, o homem que secretamente sorri com prazer diante da desgraça de um desafeto é capaz de um ato generoso com um desconhecido. O fato é que, inconscientemente, procuramos manter um equilíbrio ético, uma espécie de saldo moral positivo, que nos permita, às vezes, cometer alguns deslizes. Adeptos da psicologia evolutiva garantem que boa parte das decisões que tomamos são embasadas por nossa herança ancestral. Não é muito difícil pensar em situações em que podemos escolher como agir por nossa conta e risco, sem que a opção seja influenciada pelo olhar alheio. Interessado no assunto, há alguns anos o psicólogo Richard Wiseman, pesquisador da Universidade de Hertfordshire, na Inglaterra, espalhou diversas carteiras pelas ruas de Edimburgo, na Escócia. Algumas continham a fotografia de uma família feliz; outras de um cachorrinho fofo; havia aquelas com a imagem de casal de velhinhos e outra parte ainda trazia a foto de um bebê sorrindo. A ideia era descobrir qual ?grupo? teria maior probabilidade de ser devolvido. O resultado foi inequívoco: 88% das carteiras com a foto do bebê sorridente foram entregues, ganhando de longe das outras. Seria possível que, por uma incrível coincidência, as pessoas que acharam as carteiras com fotos de criancinhas fossem especialmente éticas e preocupadas com a aflição alheia? Duvido... Wiseman tem uma justificativa para o resultado: os bebês despertam nos adultos o desejo de cuidar e o instinto de proteção, o que daria mais chances de sobrevivência às gerações futuras. Num outro estudo, realizado na Alemanha, a pesquisadora Melanie Glocker, do Instituto de Biologia Neural e Comportamental da Universidade de Muenster, mostrou fotos de recém-nascidos a um grupo de mulheres sem filhos enquanto eram submetidas a uma ressonância magnética funcional. Usando um programa especial de edição de imagens, ela fez com que alguns rostos de recém-nascidos incorporassem mais características estéticas dos padrões esquemáticos dos bebês (olhos grandes e redondos, rosto bochechudo) enquanto outros tiveram esses traços menos enfatizados. Os resultados revelaram que as fotos com as características esquemáticas mais próprias dos bebês provocaram aumento na atividade não só da amígdala (o centro de controle emocional do cérebro) das voluntárias, mas também no núcleo accumbens (estrutura ligada ao processamento de recompensas). É bem provável que, se dependesse das participantes do experimento, os bebês ?mais fofos? ficassem mais protegidos seguros, já que evocavam mais emoções de afeto. Porém, a explicação por si só ? assim como a do experimento das carteiras ? não é suficiente, já que há tantos casos de abandono e crueldade contra crianças. Enfim, vale recorrer ao bom e velho Freud (talvez, aliás, nem não tão bom nem tão velho, mas bastante competente). O criador da psicanálise percebia a relação da ética e da consciência moral tanto com características de personalidade quanto com quadros patológicos, mas também levava em conta a importância do contexto social. Em Psicologia de grupo e análise do eu, de 1921, afirma que várias culturas consideram a crueldade e a intolerância para com aqueles que não pertencem ao mesmo grupo como ?naturais?. É a aquela fórmula do ?nós? (aqui) contra ?os outros? (de preferência, lá). Nesse processo, o outro não é reconhecido como um semelhante, mas sim como um ser inferior, que não merece a consideração que teríamos por um igual. Individualmente, no entanto, existe uma negociação interna (geralmente imperceptível) que nos guia. Segundo Freud, as bases da civilização, assim como da neurose, estão na renúncia pulsional. Ao abrir mão da realização imediata e indiscriminada dos desejos adentramos a cultura, adquirimos a possibilidade de viver coletivamente. E essa satisfação compensa o anseio simplesmente eliminar (assassinar sim, por que não?) aqueles que nos irritam e tomar sem maior cerimônia aquilo que queremos ? seja o corpo do outro, um espaço ou objeto que não nos pertence. Isso equivale a dizer que a convivência exige a tolerância constante a certa dose de frustração. Mas como vivemos de conflitos, altos e baixos, encontros e desencontros, aprendemos desde cedo que fazer concessões abre portas ? e nos oferece a oportunidade de viver prazeres mais requintados, ainda que postergados. Curiosamente, quanto mais nos vemos como pessoas capazes de influenciar o mundo ao nosso redor, mais somos cuidadosos com palavras, gestos e formas de pensar ? o que se traduz no cuidado conosco e também com o outros. Ou seria vice-versa? Não é preciso sequer tecer longas elaborações para perceber que quanto mais nos sentimos equilibrados e integrados, mais plausível parece não misturar nossas (eventuais) loucuras com as dos outros. Afinal, pensar que o outro tem o direito de ser respeitado pressupõe primeiro a existência de uma conexão mais apurada consigo mesmo e da capacidade de suportar inevitáveis faltas e angústias. É preciso dispor de um espaço psíquico que permita o reconhecimento da própria subjetividade, livre da necessidade de atender aos impulsos imediatos. Assim, maior se torna o senso de responsabilidade e a capacidade de perceber (sem onipotência ou culpa) que nossa forma de ser e estar no mundo cria, a todo o momento, redes de conexões. Feito pedra quando cai no lago. Feito gente ? e, se possível, gente ?do bem?.

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