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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|A vida não tem GPS

Todos estão perdidos, a certa altura da vida. Não há GPS. Nenhum pai vem nos estender a mão, nenhuma mãe indica o rumo.

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Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

 

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» Coisa horrível é se perder nos cantos escuros da cidade - nas vias menos iluminadas, por onde não costumamos trafegar. Coisa horrível é buscar uma luz no GPS, no celular, e nada. Nada que aponte um caminho.

Perder-se pela cidade enquanto a bateria esgota, sem sinal de vida, sem sinal de telefonia, sem satélite, à deriva. 

Ela passou por isso, esses dias. Não conseguia sair da minha casa - aninhada num desses cantos obscuros e pouco frequentados da cidade. O GPS não funcionava. No celular, os aplicativos pensavam, pensavam e não chegavam a nada, nem sequer saíam da partida.

Irritou-se. Sugeri que abrisse os vidros e deixasse o ar entrar. No cantos obscuros e pouco frequentados da vida o ar é puro e fresco, são ares nunca dantes viciados. Disse que pedisse informação a um pedestre qualquer, que atirasse pedrinhas nos vidros dos carros e das casas, como um seresteiro angustiado, a quem ninguém escuta.

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O primeiro passo para se desperder, encontrar um rumo, sair dos caminhos obscuros e pouco trafegados, é admitir-se perdido. Pedir ajuda. 

Mas ali os poucos que andavam também estavam perdidos. Sozinhos. Como homens cegos, tateavam o caminho sem GPS, sem mapa, sem bengala, sem óculos, sem suprimentos, sem nada. Ninguém podia ajudá-la.

Eu mesmo tentei, por telefone, ditando-lhe instruções: que virasse aqui ou ali, que prestasse atenção aos nomes nas placas. Não há placas, ela respondeu. Só mil encruzilhadas que se espraiam em todos os sentidos e direções: para cima, para baixo, para dentro, para o lado.

A maioria dos motoristas e pedestres, ali, àquela hora, seguia igualmente desnorteada. E, se os abordava, respondiam em línguas estranhas, dialetos incompreensíveis. A linguagem se desdobrava em todas as suas infinitas possibilidades. Um não emitia sons, apenas olhava. Outro apertou sua mão para que sentisse suas palmas quentes e suadas. Outro ria e tiritava como um bebê ainda sem fala.

Ela então descobriu que o problema não era sair de casa, não era o bug nos mapas, a ausência de sinal. O problema não era mais como ir do ponto A ao ponto B, como tantas vezes ensaiara na escola. O problema era que, àquela altura da vida, já não havia ponto B - e o ponto A era ele mesmo nebuloso.

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Digite o seu destino.

Perdida.

Digite o seu destino.

Todos estão perdidos, a certa altura da vida. Não há GPS. Nenhum pai vem nos estender a mão, nenhuma mãe indica o rumo. 
Digite o seu destino.

A frase congelada, a tela rodando sem parar. Já não era a falta de sinal, a falta de bateria, o pau no sistema. Já não era o acidente na via, a mudança de trilha, o tempo em São Paulo.

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Já não era o GPS, era a vida, e para a vida não existe satélite nem cartografia.

Teria que descobrir sozinha o caminho, a dor e a alegria de se perder nos cantos obscuros da cidade. Nos territórios nunca dantes penetrados, teria de exercitar a cartografia da sua vida, indicando entradas e saídas, desvios e atalhos. Precipícios. Princípios. Pontes. 

E, com os olhos abertos ao mundo, procurar qualquer indício de sinal, explorar cada resquício de suas energias. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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