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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Os que pensam demais e os que pensam de menos

O mundo pode ser dividido entre as pessoas que aproveitam os feriados prolongados para pensar muito sobre tudo e os que aproveitam para pensar menos, para pensar em nada. Quanto a mim, sempre fui do primeiro tipo.

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» O mundo pode ser dividido entre as pessoas que aproveitam os feriados prolongados para pensar muito sobre tudo e os que aproveitam para pensar menos, para pensar em nada.

Quanto a mim, sempre fui do primeiro tipo.

Pouco sei, portanto, sobre pensar nada - embora tenha devotado muita reflexão ao tema. Apesar de pensar muito e sobre tudo, sobretudo pensar, há saberes que não se pode apreender pelo pensamento. Saberes selvagens, saberes livres que só são possíveis, creio, de experenciar. Por isso por mais que eu tente imaginar, me esforce empilhando linhas e palavras, jamais consigo me aproximar da epifania do não pensar. Só não pensando se pode conhecer as virtudes - ou vícios - do não pensar.

Não o falo pejorativamente, pelo contrário. Com efeito, a atualidade parece marcada por uma apologia do não pensar. Você pensa demais, Renato, me disseram quatro parentes, seis amigos e três ex-namoradas. Todos, de alguma forma, pensavam ter razão na maneira de pensar: às vezes, convém evitar.

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Não tenho preconceito contra quem não pensa muito. Na minha imaginação descabida, aquele que não pensa está às portas do Nirvana. Não imagino Buda especulando sobre a ordem mundial nem travando incessantes debates sobre querelas políticas. Imagino-o como um ser cujo não-pensamento abarca todas as possibilidades de vida, perfeitamentesintonizado à natureza, que também não é nada dada a sofismas.

Mas é claro que há não pensares e não pensantes. Existem muitas maneiras de não pensar, e creio que poucas constituam virtude. A maioria é pequenez, o não pensar como fuga, como uma garrafa de cachaça que escondemos sob o chapéu para toda e qualquer emergência. Os que não pensam porque não suportam pensar, que não pensam porque tudo precisam evitar, esses não têm minha simpatia. Não consigo conceber um Nirvana que se abra por preguiça, apatia, covardia, insensibilidade, incapacidade de amar.

No meu mundo, portanto, o não pensar que almejo e que consigo imaginar (aquele que suponho recomendado por parentes, amigos e ex-namoradas) é muito peculiar. É nada menos do que a coroação do pensamento, o cume mais alto em que alpinistas enfim descansam, vitoriosos. O não pensar que, pelo exercício rigoroso dos cinco sentidos, pela disciplina férrea do amor, se conquista após longa escalada, com algum esforço e tremendo.

Assim eu gostaria de não pensar, como uma consciência pairando sobre angústias e desejos comezinhos.

Não mais próximo dos gritos da rua, não mais próximo dos sociopatas com grandes planos, a qualquer momento prontos para destruir o mundo com sua ignorância altiva.

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Queria atingir um não pensar que fosse mais próximo de Deus - qualquer que seja a sua cor, o seu sexo, a sua estatura, as suas posses, a sua religião.

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Por outro lado, pensar demais pode também tanto ser bom quanto ruim. Pensar demais pode, curiosamente, levar aos mesmos sintomas de pensar de menos: apatia, afasia, paralisia. Quem pensa muito pode terminar soterrado pela avalanche, incinerado pelo monumento em chamas. Mas pensar demais pode ser bom, em outro sentido, se esse pensamento dá à luz a filosofia, a arte, a palavra ou gesto que nos engrandecem. Nenhuma obra de Shakespeare é fruto do acaso. Nenhuma palmeira de Guimarães Rosa foi preguiçosamente plantada nas páginas de seus diários.

Pensar pode ser vida ou morte, inércia ou criação. O pensador de Rodin é um monumento triste ao pensamento, pensei na primeira vez que o vi, na Pinacoteca de São Paulo, porque cristaliza um tipo mórbido de reflexão. Não imagino aquele pensador, protagonista da célebre estátua, dançando, comendo, amando.

Imagino-o apenas imóvel, eternamente, vítima de seus próprios novelos.

Um pensador triste. 

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Ou apenas um pensamento triste que me ocorreu, bem no meio do feriadão. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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