Foto do(a) blog

Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Lições do caso Bel Pesce

Quem conta um conto aumenta um ponto. Mas uma coisa é a mesa do bar, outra, o comércio em rede nacional.

PUBLICIDADE

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

PUBLICIDADE

»Meu contato com redes sociais é esparso, espasmódico. Nada contra: como a maioria das pessoas da minha geração, acho a invenção frequentemente divertida, às vezes útil, sempre sedutora.

É mais por uma questão prática: o Vale do Silício não inventou aplicativo que estenda o dia para 36 horas, então tenho de me virar com as 24 definidas pelo relógio de sol dos babilônios - a gente nem sabe de onde vêm as forças que orientam nossa vida, não é mesmo?

[E vejo cada vez menos sol, mas cada vez mais relógios, hoje em dia.]

Para tudo há um prazo: corrigir trabalhos e provas de alunos, emitir pareceres de publicações, estar em sala de aula, escrever, ler... Enfim, as redes sociais são maravilhosas, mas a pia está cheia de louça e alguém precisa fazer algo a respeito. Talvez por isso os maiores usuários de internet que eu conheça ainda morem com os pais. Ou não liguem muito para a louça.

Publicidade

Em minha última navegada ocasional, deparei com uma avalanche de críticas à palestrante/empreendedora/menina do vale Bel Pesce. Tudo começou com uma campanha de crowdfunding (ou seja, uma vaquinha), para que ela, o vencedor do Masterchef, Leo, e um terceiro elemento de quem nunca ouvira falar arrecadassem dinheiro para abrir uma hamburgueria. As redes sociais reagiram com fúria.

Fui entender. Os argumentos dos críticos eram consistentes, mas moralistas. Tipo: como três riquinhos (e Leo acabou de ganhar R$ 150 mil no Masterchef) vêm pedir o meu dinheiro para abrir o negócio deles? Que coragem! E logo uma hamburgueria, negócio mais manjado em São Paulo do que pókemon no Ibirapuera.

Concordei com as críticas: não doei um centavo. Agora, se meu vizinho tem cem dinheiros sobrando e quiser colaborar com a riqueza alheia, que o faça. Quem sou eu pra dizer em que os outros devem gastar sua grana - eu, que nunca acertei um investimento, eu, que gastei tudo em viagens, livros e pugs.

Criticaram ainda o nome do local: Zebeleo. A veia de escritor latejou. OK, é ridículo. Só posso supor, então, que o terceiro sócio se chama... Zé. Para um negócio que se propõe inovador e revolucionário, que quer ser a primeira lanchonete do mundo a se financiar por uma vaquinha, atinar com um nome que reúne pedacinhos dos nomes dos fundadores é tão genial quanto rimar amor e dor. Ronicleides que o digam.

Mas o Zebeleo, que aliás desistiu da campanha de arrecadação de doações, depois da saraivada de críticas, era a ponta do iceberg.

Publicidade

#Belpesce x #Izzynobre

PUBLICIDADE

O blogueiro e comediante Izzy Nobre se interessou pelo assunto e quis saber quem era Bel Pesce. Sem ser jornalista, agiu como um e fez (uma boa) lição de casa: duvidou, pesquisou e concluiu que a Menina do Vale exagera na autopromoção. A cada conto, aumenta um ponto.

Quem nunca?, até pensei. Mas uma coisa é aumentar as próprias glórias na mesa do bar, outra, comercializá-las em rede nacional.

Izzy poderia ter ido mais longe e realizado entrevistas, de preferência pessoalmente, levantado documentos e, após investigação exaustiva, pôr a termo a discussão? Sim, poderia. Assim como, na próxima vez que pintar a sua casa, você poderia fazer uns afrescos sistinianos no teto.

[Ou seja: não cobre jornalismo de ponta de quem nem jornalista quer ser. Isso só mostra, para mim, que o jornalismo profissional como um método rigoroso e ético é mais e mais necessário no mundo atual. E mais raro. Por isso, que bom que o blogueiro jogou essa bola pra campo.]

Publicidade

A história ainda se desenrola e Bel terá amplo espaço para se defender, como já começa a fazer. Seu direito e dever. A questão, contudo, me faz pensar em um paradoxo curioso deste mundo ultraconectado: nunca foi tão fácil mentir, mas a mentira nunca teve perna tão curta.«

Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.