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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Memórias do porvir

Minha memória, que olha para o futuro, para um futuro possível, dentre todos os outros, evoca a saudade de todas as coisas que poderiam ter acontecido. Desde menino.

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Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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Eventualmente sua face obscurece. O contorno das linhas do rosto, tão marcadas, tão marcantes, dissolve-se no horizonte. Lentamente a cor de seus olhos escapa: verdes, azuis, castanhos; mel, chumbo, folhagem. Aquela música do Caetano. O nome de uma professora. A sequência exata de movimentos na Nona Sinfonia. A terceira estrofe de um poema querido. O som do cachorro pela casa. Tudo.

A memória um dia avança pelo avesso, volta o olhar para o futuro, entre suspiro e devaneio. E de todas as coisas que me irritam, envergonham, entristecem e fascinam, a memória é senhora. Não há nem sequer vida fora da memória.

Tátil, olfativa, auditiva, visual, gustativa. Classificamos nossa capacidade de recordar segundo os nossos sentidos, talvez para torná-la menos assombrosa do que é. Mais tateável, mais audível, quase palpável. Mas ela, como a chuva por entre mãos pequenas, escapa.

Sempre me escapou como um sentido que entorpece ao terceiro cálice. A memória, tantas vezes fugidia: em prova, aula, apresentação, composição, trabalho, ócio, carta de amor. Quando nasci, um anjo distraído, dos que suspiram pelo infinito, disse-me vai, Renato, ser desmemoriado na vida.

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Por isso escrevo, não para contornar a mortalidade, mas para adiar meus esquecimentos.  

E, no entanto, lembro de tantos detalhes com vivacidade. Não a memória do tato, do ato, do concreto, do cheiro, do gosto, do aspecto. A cristalina memória do porvir, déjà vu que persiste mesmo após encenados os meus desacontecimentos. De repente me assalta a lembrança dos seus pés descalços sobre a areia, que nunca vi, ou de um giro sincronizado d'O Lago dos Cisnes, que não conheci.

Inesperadamente aquele verso que você não disse, aquela brisa que não veio, aquele beijo, aquele passeio pela orla do Tejo, do Reno, do São Francisco.

Minha memória, que olha para o futuro, para um futuro possível, dentre todos os outros, evoca a saudade de todas as coisas que poderiam ter acontecido. Desde menino.

Mas talvez seja assim porque tudo o que pode acontecer acontece, eventualmente. E a memória, como um deus antigo pairando sobre todas as coisas, apenas aguarda a realização do destino.

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Para que então se torne carne.

Para que então tudo alcance o seu sentido. 

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Meu romance, Febre, você encontra aqui. 

Um conto fantástico: A guerra das torres.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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