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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Nem tudo é racismo, nem tudo é sexismo

Resistir ao preconceito, e resistir a taxar tudo de preconceito, é um ato consciente, um esforço contra nossa natureza preguiçosa e simplificadora.

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Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» Um garoto é espancado na escola por ser gordo demais - logo, merecedor. Uma garota é excluída porque seus pais vêm a pé buscá-la desde a mais distante periferia - sua cor a denuncia. Uma mulher se depara com a prova de fogo: ou dá, ou desce. Pelo comprimento da saia, o chefe acha que será fácil.

A discriminação é real, embora dissimulada na passagem das horas - alguém muda de assento para não sentar próximo a um negro, alguém aperta a bolsa contra o peito ao ver um latino, alguém vira a cara ao beijo gay, alguém acha suja a amamentação, alguém sutilmente descarta a contratação de uma mulher, alguém repete piadas de loira, gordo, português. Mas todos, confrontados com a bile amarela da repulsão, demonstram espanto. Às vezes genuíno, às vezes estudado. Preconceituoso, eu?

Não obstante ninguém ser preconceituoso, o preconceito existe. Está exposto em vísceras na internet, onde petistas e tucanos se engalfinham, brasileiros ofendem brasileiros - nordestinos, nortistas -, ricos têm ojeriza a pobres, brancos e negros criticam negros. Assim como os esquimós têm denominação para mais de cem tipos de neve, inventamos cem tipos de não-negros no país: mulatos, escurinhos, morenos etc.

Resistir ao preconceito é um esforço consciente. Embora todo mundo nasça sem discriminação de cor, credo ou orientação sexual, ninguém deixa de cultivá-los ao longo da vida. De certa maneira, viver é construir preconceitos, isto é, introjetar e automatizar juízos prévios de valor. Todo evangélico é bitolado. Todo carioca é malandro. Todo isso é aquilo. Assim seguimos, simplificando a vida em prejuízo dos humilhados de sempre.

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Por outro lado, o preconceito torna a vida insuportável. Que difícil ser gente, num mundo de gentalha. De que lado você está? Talvez só dependa do humor, da hora do dia.

A discriminação é real. Mas nem tudo é discriminação. Ou, como disse Chris Rock no discurso de abertura do Oscar, embora Leonardo DiCaprio consiga um bom papel em um bom filme todos os anos, e embora para negros isso nunca aconteça, nem tudo é racismo, nem tudo é sexismo.

Nem tudo é racismo, nem tudo é sexismo. Se considerarmos haver um movimento pendular na história, que faz épocas conservadoras sucederem épocas libertárias, que faz prazer e dor se engalfinharem perpetuamente, empurramos hoje o pêndulo para o extremo de um suposto bom-mocismo. E nada pior, nada mais injusto e deletério do que um bom mocinho.

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De algum modo, perdemos a noção das coisas. Do "nada é assédio, do tudo é permitido", passamos ao "tudo é assédio, nada é permitido". Tudo é discriminação, tudo é ofensivo. Rock brinca: não perguntam o que os homens estão vestindo no Oscar porque todos se vestem da mesma forma. Se George Clooney surgisse de smoking verde com um cisne pendurado no rabo, certamente lhe perguntariam o que você está vestindo? Se um homem se oferece para abrir a porta do carro ou pagar uma conta, não está dizendo "fêmea, você não é capaz de pagar uma conta".

Ou está? Pode estar, é verdade. Mas não necessariamente. Afinal, vivemos pagando cafés e cervejas aos amigos, que também, em tempo, retribuem.

A discriminação é insidiosa. Fora da internet, não se exibe facilmente. Considerar tudo a priori como uma forma de humilhar e rebaixar o outro é não apenas injusto, mas, sim, preconceituoso.

Resistir ao preconceito é um esforço ativo, consciente, uma afirmação moral e ética dispendiosa, pois primeiro é preciso dolorosamente rever o que somos, o que pensamos.

Afinal, também nem todos os brancos, nem todos os paulistanos, nem todos os ricos, nem todos os homens, nem todos os heterossexuais são iguais. Ou são?«

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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