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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Pais solteiros

Ser mãe é uma descoberta. Ser pai, um reencontro. O homem primeiro redescobre a criança que havia em si, e, assimilando-a novamente, torna-se pai.

Foto do author  Renato Essenfelder
Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

 

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A casa é uma nau fora de rumo. Partindo às Índias, atraca no Brasil. Está tudo fora de lugar, tudo é muito diferente do que se esperava encontrar - e, no entanto, mais belo. Explode em vida, em cores, texturas, aromas, ruídos. A sala da casa não se parece em nada com as capas de revista. Não se parece em nada, em mais nada, é verdade, com a própria casa, há menos de um ano. Era tudo diferente.

Ter 30 anos significa ter muitos amigos já com filhos. E ter 30 anos em 2014 significa ter amigos solteiros com filhos. Com grandes chances de ser, você também, um.

Há uma beleza bruta no pai solteiro. A beleza desajeitada de um arbusto contra o vento, a beleza sem jeito de um cocho. O pai solteiro abre a casa à nova vida, sem preocupação de controle, método, aparência, e deixa que a nau desgovernada flutue. E como flutua. A casa do pai é a casa do filho: tem o cheiro do filho, brinquedos em todas as partes - de todas as artes -, rastros de brincadeiras, afagos, cochilos, descobertas sem hora.

Dizem que a mãe nasce na gravidez. Num processo contínuo de afeição e nutrição, forma seus laços secretos. Constitui-se como é. Quando nasce um filho, nasce uma mãe, diz o ditado. Suas gestações são paralelas, perfeitamente simétricas. Dão, juntos, à luz: mãe e filho.

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Mas não o pai. Espectador de uma gestação também sua, embora fora de si, externa ao seu corpo, a natureza de seu nascimento é outra. O pai, em especial o solteiro, emerge. De repente, inesperadamente. A mãe emerge em função do outro que é um pedaço de si, a vida que nutre. O pai de repente sintomaticamente volta a ser criança, reencontra a criança que foi ou quis ser. E, novamente, é.

Ser mãe é uma descoberta. Ser pai, um resgate.

Um toque de mãos, um olhar, um primeiro contato afetuoso com o filho faz com que o homem resgate a criança de si - e, assim, torne-se pai. O homem rompe seu casulo e torna-se criança. Na comunhão dos dois estados, redescobre-se. A isso chamamos pai.

Por isso na casa do pai solteiro há duas crianças: ele e a sua.

O pai ainda alimenta, provê, cuida, observa, zela, embala, limpa, afaga. Mas é também a criança que rola no chão com a criança, a criança que mostra os brinquedos à criança, a criança que se faz de brinquedo, a criança que faz careta, birra, compreende e fala a mesma língua.

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É uma criança, o pai, de terno e gravata. No comando de uma nau inesperada, feita de papelão, jornal e guache, parte às Índias e atraca no Brasil. Solteiro, sozinho comanda o navio. O seu primeiro imediato nem largou as fraldas. Comanda a nau com seriedade - mas, no meio do caminho, finge ter perna de pau, rodopia, apita.

No meio do caminho, perdendo-se, ele se descobre.

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Meu romance, Febre, você encontra aqui. 

Um conto fantástico: A guerra das torres.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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