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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Por que não parabenizei as mulheres no Dia das Mulheres

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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Neste ano não parabenizei nenhuma mulher no Dia 8 de Março.

Há muitas mulheres em minha vida, e amo-as todas. Filha, mãe, amigas que me compreendem tão bem. Há colegas de trabalho, há subordinadas de quem muitas vezes dependo e há chefes a quem escuto atentamente, de quem aprendo. Em comum, são mulheres. Mas as semelhanças param por aí.

Há, como sabemos, gentes de todos os tipos no mundo. Há mulheres de todos os tipos. Mas o Dia da Mulher me faz parecer, por alguns instantes, que só existe um tipo no planeta. A publicidade destas semanas, com seus anúncios cor de rosa escritos com letra cursiva, imagens de flores e outras meiguices, me faz acreditar que mulher é isto: um bicho que gosta de rosa e de flores, que vive suspirando por aí, perdida de amor.

Há tempos, contudo, não encontro uma mulher perdida por aí, suspirando de amor. Não tive a quem parabenizar no dia, portanto. Nenhuma das mulheres reais da minha vida se parecia com aquelas dos cartazes.

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O Dia Internacional da Mulher não acontece no 8 de Março por acaso. Nesta data, em 1857, operárias de uma tecelagem em Nova York morreram carbonizadas durante um greve por melhores condições de trabalho. A carga diária chegava a 16 horas. A recompensa? Ganhavam um terço do salário de homens em igual função (e sofrimento). No mesmo dia, do outro lado do mundo, operárias russas em 1917 pediam o mesmo: igualdade e dignidade. Lá, o barulho fermentou a Revolução.

[Estamos falando de eventos ocorridos há um século. Uma pauta longínqua e superada. Ou não?]

Com o tempo, o dia de luta e morte virou uma espécie de Dia dos Namorados, só que mais democrático, que aceita até quem não tem namorada. Você pode (e deve) distribuir flores e chocolates para qualquer mulher, no Dia das Mulheres, e fica por isso mesmo.

Mas há tempos que não encontro, fora dos livros açucarados e da televisão, uma mulher suspirando de amor esperando que um príncipe gentil lhe traga flores e chocolates.

Não tenho nada contra gentilezas, pelo contrário. Dissemino-as quando posso. Gosto de pedir por favor e licença, acenar ou sorrir gratuitamente, pagar a conta do restaurante (quando posso), surpreender com mimos, tecer elogios sinceros. Aplico a doutrina inclusive aos amigos homens, a quem volta e meia acabo pagando o café da tarde. Não é bem uma questão de gênero, portanto, mas de humanidade. Gentileza, apenas.

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Não tenho problemas com amabilidades, por certo, mas o que mais tenho visto nestes tempos bicudos são mulheres descabeladas, à beira de um ataque de nervos, sem esperar por menos do que um milagre. Não estão assim por conta de hormônios, tensões pré-menstruais ou questões assim "femininas", que muitas vezes são apenas o pretexto para encerrar uma discussão desconfortável. Estão estressadas, sobrecarregadas de trabalho dentro e fora de casa, desoladas com a impotência diante das pequenas (ou não) humilhações do dia a dia. Males crônicos, portanto, que não vestem rosa nem trazem flores.

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Eu não parabenizei nenhuma mulher no Dia 8 de Março porque não saberia como fazê-lo. Não havia mulheres (como aquelas das propagandas, claro) no meu mundo. Nenhuma amiga sinceramente esperava ganhar chocolates. Elas não se pareciam enfim em nada com as moças sorridentes dos reclames cor de rosa.

Tudo bem, Renato. A vida não quer teus chocolates. O que a vida quer da gente é coragem.

A todas, então, sorridentes ou mal humoradas, suspirosas ou desencantadas, crentes ou desesperançosas, amantes de flores ou de chocolates, ignorantes, letradas, cultas, toscas, brilhantes, chatas, apagadas, bonitas, feias, magras, gordas, inexpressivas, angustiadas, gentis ou grosseiras, a todas as mulheres de verdade: sigam com coragem.

(E, se pudermos avançar com gentileza também, muito obrigado.)

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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