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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Por um mundo climatizado

Mais jovem, fugia do ar-condicionado, sua promessa de infecções, de bactérias. Hoje, não vivo sem ar-condicionado.

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Atualização:
 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» Nunca gostei de ar-condicionado. 

Não por ódio gratuito. O corpo, que sempre pensou melhor do que a mente, sofria. O nariz enrijecido incomodava, a garganta arranhava. Não raro, saía afônico ou resfriado do ônibus Curitiba-São Paulo, certamente um dos dez locais mais frios do planeta. Culpa do ar-condicionado.

Antigamente era possível dar-se a esse luxo: fugir do ar-condicionado. O aparelho era restrito a shopping centers e aos carros da gente muito bacana, que eu não frequentava. Na sala de aula, no auge do verão, os alunos abastados usavam microventiladores paraguaios que nem uma semana duravam. Se o calor era demasiado, no banheiro  afundávamos a cabeça na água fria. Nada de ar refrigerado.

Mas nas últimas duas décadas, assisti, impotente, à ascensão do aparelho nas salas de aula, casas, comércios e, claro, carros.

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De início sofria, ah, como sofria. Buscava estrategicamente a mesa mais afastada dos dutos, nos restaurantes. Era o cliente ou passageiro inconveniente que pedia para baixar o ar - o que frequentemente era interpretado como deixar o ambiente ainda mais frio, ao contrário do que eu pretendia.

Era um garoto em paz com o sol, em um mundo em guerra contra o clima.

Mas então algo aconteceu.

A trégua durou pouco. Alguns dizem que foi o aquecimento global, outros, a idade e seus calores biológicos. Chamam-lhe de El Niño, de La Ninã, chamam-lhe de como quiserem chamar. Seja qual for a razão, hoje não vivo sem o ar-condicionado.

Ou vivo mal; vivo suado, cansado, indisposto, gotejando como uma velha torneira. Preciso do ar-condicionado para trabalhar, para pensar. Como quem respira por aparelhos, respiro pelos dutos gelados.

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A temperatura em abril passou dos 30 graus quase todos os dias, no outono paulistano. No Rio ou no Nordeste, ainda pior - e que Deus tenha piedade de nós. Em Curitiba, velho refúgio gelado, não consigo mais dormir. Sem ar à vista, deito com o ventilador a 30 cm do rosto. Sonho com um mundo climatizado.

Ligo o carro e me deito sob o ar-condicionado. Penso na infância, sinto a areia fofa da praia entre os dedos dos pés, nas doces manhãs congelantes em que caminhava quilômetros até a escola. Penso na vida, sorrio, me ocorrem dois versos de uma poesia.

Então o ar desliga, e não penso em mais nada. «

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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