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Males crônicos - crônicas sobre neuroses contemporâneas

Opinião|Trabalhar sob pressão

Hoje, desconfio de qualquer pedagogia do parafuso, do assédio; de boas intenções em dinossauros.

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 Foto: Estadão

arte: loro verz

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» Em uma de minhas primeiras experiências profissionais na vida, conheci Tião. Tratava-se de um tipo grosseiro e mal humorado, que aparentava ter uma ou duas décadas a mais do que tinha. Conhecer é modo de expressar. Eu nunca conheci Tião. Tião era meu chefe.

Tratava-se de uma figura desproporcionalmente arrogante, dada a sua inteligência. Pensando melhor, era compreensível que fosse arrogante. (Demorei anos, e muitos fortuitos encontros, para perceber que os mais humildes à minha volta eram também os mais brilhantes. Que aqueles que já não tentavam provar nada, cujas marés repousavam silenciosas, sem alarde, na penumbra estrelada, eram aqueles capazes de afogar com uma palavra, um olhar.)

Tião se orgulhava de sua elevada capacidade de liderança. Confundia autoridade com respeito, medo com carisma. Desenvolvera um método de gestão peculiar cuja máxima não professada era: uma lágrima por dia. Ou, nos seus termos, cada dia, um esculacho.

E como éramos esculachados. Em certo momento do trabalho, nós, os peões, elaboramos uma escala diabólica segundo a qual ninguém poderia ser espinafrado mais do que uma vez por semana.

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Para cumprir a escala, bastava cometer um dos erros inadmissíveis para o velho verdugo. Atrasar-se alguns minutos, usar roupa inadequada, não atender a uma ligação sua, errar uma crase (tinha especial predileção por crases), ou candidamente fitá-lo nos olhos por mais de dez segundos. Era o suficiente, ao menos para as meninas, pois Tião era, além de tudo, misógino. Nós, garotos, nos esforçávamos mais para fazer jus ao dia do esculacho. Errávamos, num mesmo texto, duas crases.

De fora, os colegas assistiam àquilo entre o espanto e o divertimento. Alguns, solidários, entre uma cerveja e outra no balcão das lamentações, consolavam: mas pense no lado positivo.

1) Você pode aprender muito com ele, é bom ter chefe rigoroso;

2) ele não vai durar para sempre;

3) é só trabalho.

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Não tardou, é claro, para que detectássemos os furos nas tábuas de salvação. Nosso aprendizado diário corria largamente no campo do cinismo, do pânico, da depressão, da angústia e, eventualmente, da crase. O rigor jamais se confunde com a brutalidade. Ademais, a cadeia de comando era uma demonstração vívida da banalidade do mal: os que progrediam na carreira eram os que não se importavam com as barbaridades diárias.

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Como vaso ruim não quebra, e como Tião já trabalhava no local havia 30 anos, duvidávamos da hipótese 2. Como o diabo, era imortal (e segue, até onde sei, assombrando os mesmos corredores, pouco importa se em carne viva ou em alma penada).

É só trabalho, outro dizia, e assim nos consolávamos, fechando os olhos ensopados. Mas nunca é só trabalho, e, salvo para uma categoria muito especial de gente, é impossível distinguir a vida pessoal da profissional. A vida é a vida. Casamentos ruíram à sombra de Tião. Gastrites proliferaram. Cachorros e crianças ficaram à míngua.

O que me espantava, contudo, eram os que desenvolviam certa carapaça. Os que não se importavam. Eu achava que a insensibilidade a Tião era mais difícil do que a insensibilidade à radiação atômica. De Tião, nem as baratas escapavam. Mas não: havia, sim, um reduzido número de funcionários que simplesmente não se importavam. Gostavam, até. Funciono melhor sob pressão era a resposta mais ouvida.

Como o peixe das fossas, contudo, fui me deformando à medida que adaptava corpo e alma àquela situação. Trabalhador abissal.

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Hoje, desconfio de qualquer pedagogia do parafuso, do assédio; de boas intenções em dinossauros. O trabalho não precisa ser fonte constante de prazer, assim como não redime de nada: um trabalho é um trabalho. E que sorte poder fazê-lo em paz. «

 

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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