arte: loro verz
» A fantasia coletiva dos brasileiros é vencer na loteria. Simples, direta, sem grande substância filosófica. Vencer na loteria - de preferência a acumulada -e um belo dia acordar com 20, quiçá 40 milhões de reais na poupança. Nunca mais fazer nada.
Então as portas do mundo estariam abertas. Nunca mais o felizardo haveria de se preocupar com qualquer coisa que fosse. O espírito de Deus adormece numa pilha de dinheiro, onipotente. Saúde, amor, amizade, realização pessoal, profissional, espiritual: o pacote mega-sena inclui tudo.
Eu também nutria essa fantasia. Até hoje, volta e meia me pego sonhando acordado. O que eu faria com 40 milhões de reais? Mas, limitado que hoje sou, no campo da imaginação perdulária, dificilmente passo de "viajar o mundo", "mudar para uma casa com jardim e biblioteca" e "comprar tempo para escrever".
À medida que os aniversários passam, a lista encolhe. Com 15 anos eu saberia torrar milhões em dias. Com o dobro disso, mal saberia por onde começar. Envelhecer (bem) é não entender. É despojar-se das certezas. É, se bem conduzido o experimento, espantar-se mais e mais.
Entre as coisas que desaprendi a entender, no início da envelhescência, está o dinheiro; o apetite de acumular. Obviamente agradeço o tostão de comida, casa, saúde, estudos, viagens e pequenas indulgências - tortas de chocolate, capuccinos e sessões de cinema. Ademais, seriam bem-vindos os ingressos aos shows além do meu orçamento atual (David Gilmour, Jethro Tull, Pearl Jam e uma longa lista de etc.).
Valorizo os centavos, abstraio os milhões.
Em algum momento cheguei a ficar feliz com isso, com a redução das ambições monetárias, vislumbrando aí a trilha da paz espiritual: a libertação do desejo. Se você tem vinte anos e se cobra diariamente a conquista do primeiro milhão de reais antes dos 30, sabe do que estou falando. Se você completou 30 e já não está nem aí com isso, somos irmãos.
Mas é claro que um desejo vai sendo substituído por outros dois, e assim seguimos. Se não tenho como meta o milhão, tenho outras ambições, talvez mais inatingíveis ainda, porque abstratas, inquantificáveis. Saber, conhecer, expressar, sentir, perdoar.
Diante disso, como me espantam os adultos que ainda acham que mais é mais, que menos é menos.
Na TV, acompanho, pasmo, as gentes de sucesso anunciando produtos (que desconhecem) com sorrisos amarelados no rosto. Um Buddy Valastro, conhecido em metade do mundo, com a avidez do garoto atrás do primeiro milhão. Alex Atala e caldo de carne engarrafado. Xuxa e seu xampu. Turma da Mônica e seus nuggets. Eu me pergunto, sem falsa ingenuidade: por quê? Que diferença faz, na conta deles, embolsar mais 100 ou 200 mil reais? Que seja: mais 500 mil, um milhão? Por que se submeter, até os ossos, a essa engrenagem desumana?
Por que chancelar produtos que mal conhecem em troca de um dinheiro que certamente não usarão? Quando muito é suficiente? Quando mais é supérfluo?
Nos meus 50 metros quadrados na Pompéia, nada sei da necessidade de acumular capital, não entendo em que momento a atividade-meio (para uma boa vida) passa a ser atividade-fim (a vida).
Se pudesse, eu teria uma casa com jardim. O jardim eu povoaria de árvores frutíferas e cachorros.
Nos fins de semana, leria meus livros favoritos sob a sombra das pitangueiras. «
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