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Crônicas do cotidiano

O sabonete

Não existe na Terra trabalho tão digno quanto o do sabonete. Como também não existe na Terra trabalho mais indigno que o dele. O mais prazeroso, mas nem por isso menos árduo; o mais honesto, mas nem por isso menos sujo [e eu digo absolutamente em todos os sentidos]. Os sabonetes merecem méritos e um busto na praça, entre os tantos outros como o da toalha, o das roupas íntimas e o dos "n" tipos de papéis higiênico.

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Por Ricardo Chapola
Atualização:

Para ser sabonete, leitor, é preciso ser macho mesmo.

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Ser chamado de cheiroso e sempre aparecer deslizando feliz e contente pelas cobiçadas curvas da gostosa do comercial é só a parte boa do negócio. O lado negro da coisa fica a mercê da sorte de quem  será a próxima figura a entrar no banheiro para um banho, ou mesmo só para dar uma breve lavada nas mãos.

Dá pena, porque os sabonetes, essas pobres criaturas inanimadas aromatizadas, nunca foram sequer alertados disso. Eles, vedados em embalagens mentirosas que os predestinam somente ao filé das texturas corporais, são embriagados pelas essências, hipnotizados pela foto de uma outra gostosa no rótulo e, quando menos esperam, já estão dentro da saboneteira de uma república de alunos de engenharia da USP.

O caminho do céu para o inferno não é tão longo: apenas um trecho na cesta do supermercado, depois tomar uma sacolinha no caixa e, por fim, chegar ao banheiro da casa onde a testosterona escorre pelos rejuntes dos azulejos.

E de testosterona os sabonetes sabem bem, muito bem, especialmente quando recebem sobre sua superfície recém umedecida, logo depois do banho de um dos jovens, uma tradução de hormônios não muito bem-vinda: pêlos. Pêlos das mais variadas cores e regiões: os mais escurinhos e enroladinhos, dos países baixos; os mais clarinhos e lisinhos, das zonas emergentes.

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O ganho da pelugem tem tudo a ver  com a enganação vexatória pela qual passam os pobres sabonetes: eles vão ficando cada vez mais cabeludos na medida em que escorregam por partes nunca d'antes escorregadas. Rotas das quais só conheciam os trechos mais macios, carnudos, sedutores e ilusórios que lhes eram apresentados na TV, como se fosse um mapa para dourada Eldorado, em que não só o destino fosse a recompensa, mas sim cada centímetro de tez perfumada por sua espuma.

É triste a rotina de um sabonete mal-aventurado, transeunte de vias esburacadas, obscuras e que só lhes rendam tudo que deveria render em satisfação, em cabelos. Mas há também aqueles que caíram nas graças do bom humor do destino e foram brindados por toda a profecia dos rótulos: passeios deleitosos nos contornos dos seios, passando pela barriga, depois pela silhueta e finalmente pela perna, com a musiquinha do comercial de fundo se derem sorte.

Eu só fico com pena dos outros. O bom dos sabonetes é que todos eles, felizes ou não, carecas ou cabeludos, somem um dia, pelo menos - sem nenhum trocadilho [oportuno], por favor.

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