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Crônicas do cotidiano

Vizinhos, sempre vizinhos

Num primeiro instante penso que já não dá mais para garantir as mesmas simpatias nos trambiques para os quais a vida moderna nos empurra. Faltou açúcar, não há bendito mercado aberto bem na hora em que mais se precisa da especiaria - às 2h da manhã? Ué, sempre haverá a porta ao lado: a mulher tem marido e dois filhos, batata que açúcar não faltará. A noite pede vinho, mas na mudança a gente jamais se lembra de que algumas maravilhas do mundo têm o esmero das garrafas, coloridas, multiformes, todas com a inconveniência do lacre. Lapso de memória que, lógico, não ocorreu ao vizinho da frente: ali baixou a genialidade de antever que a melhor noite de uma vida pode estar deslizando nas espirais de um saca-rolhas.

Por Ricardo Chapola
Atualização:

Por esses e outros perrengues é que um dia me pus a idolatrar a vizinhança, deferência provinciana, caipiresca até, de gente que, como eu, um dia reduziu esta condição à mera divisão da parede. Algo intocado se não fosse a chegada dos prédios e de suas determinações compulsórias: tirando o achatamento dos cômodos, a extinção do quintal, da edícula, o fim dos churrascos espaçosos com amigos, ainda há a extensão do contrato de comunhão de bens para as 4 paredes, teto e chão - você geograficamente espremido e vitalmente coibido.

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A arquitetura moderna de majestades verticais - de horizontais às vezes não tão majestosas assim - me sugam a desfiladeiros reflexivos, tão profundos quanto o risco do fim das cervejadas dominicais, do futebol, ou quanto as moderações que desde então tive que engolir ao emitir o sonoro "chuuuuuuupa Corinthians" da janela porque a senhora do apartamento ao lado tem enxaqueca. De repente, a antiga cumplicidade inconsciente entre nós escafedeu-se. De repente, nossos únicos pontos em comum não passavam mesmo de uma única placa de concreto, fina demais para tantas divergências. Eu não gostava de Michel Teló, mas pelo respeito intrínseco da relação original, ponderava: mas ele atura minhas óperas de banheiro. O vizinho de baixo também: aguentou a barra o quanto deu resistindo aos enfartes sempre que recebia a estrondosa notícia de um gol com os meus pulos eufóricos na sala. A gente tentou, não há dúvida. Todos à sua maneira, pondo tudo na balança, suportando os desaforos e engolindo sapos por um lado e, mesmo assim, mantendo o cordial "bom dia" ao tomar o elevador, por outro.

O fio da tolerância se rompeu.

Estava nos olhos a sensação da frustração de um amor mal sucedido. Uma tristeza de perder a herança que viajou por ramos longínquos da alta árvore genealógica humana. Não foi por displicência, muito menos pela falta de tentativas, por isso não nos culpemos, meus queridos vizinhos.

Apesar da atual saliência de nossas diferenças, da nova construção civil e de suas casas de paredes finas, não guardo rancor. Até porque não há culpados nessa lambança sócio-estrutural, é mais uma questão de mais ou menos sorte da qual somos reféns. Vizinhos são tipo família: a gente não escolhe o buraco em que vai cair. E como tal, acho que merecem minha mínima aceitação pelo menos. Sejam bacanas ou rabugentos, ricos ou pobres, paulistas ou nordestinos, curtam eles Aviões do Forró ou sinfonias de Mozart. Talvez isso só seja mais um recalque barnabé meu. Mas não quero que minha reavaliação diplomática seja tão radical a ponto de comprometer o açúcar que pode faltar, ou a melhor noite da minha vida, que pode passar em branco pela falta do saca-rolhas. Esperem tudo de mim, queridos vizinhos. Menos isso.

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