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Deambulações

Abre-te Sésamo!

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Por tataamaral
Atualização:

Semana passada comentei aqui que Roma é uma cidade aberta. Me referia, não ao filme de Roberto Rossellini, "Roma, cidade aberta", mas ao fato de Roma ter uma intensa vida diurna e noturna em espaços públicos.   São Paulo, acredite, pode estar caminhando para isto. Sábado a noite fui até o Largo São Francisco numa festa chamada "Santo Forte": o DJ Tutu Morais discotecou pelas ruas do centro velho. Ainda faço a distinção - aprendi com meus pais - entre o centro velho e centro novo. O triângulo entre o Vale do Rio Anhangabaú, o vale do Rio Tamanduateí (Parque Don Pedro) e a Praça da Sé foi o núcleo inicial da cidade, o "centro velho", que se construiu entorno do Pátio do Colégio. O "centro novo" é aquele que se constituiu para além do Vale Anhangabaú e se desenvolveu principalmente depois da construção do Viaduto do Chá. Mas isto, imagine, foi no final do século XIX! Não é nem do tempo de meus avós, que nasceram no século XX. Herdei a distinção dos meus pais que devem tê-la herdado dos meus avós que, por sua vez, devem tê-la herdado dos meus bisavós e demais contemporâneos.   Voltando: o "Santo Forte" aconteceu nas ruas do centro velho. É uma das festas mais legais da cidade! Só toca música brasileira boa, de todas as épocas, de todos os ritmos. Tutu não deixa a peteca cair. A festa, que normalmente acontece em espaços fechados, quando vai para a rua se chama "Santo Forte de Rua". Sábado aconteceu no contexto de um projeto da Prefeitura de São Paulo chamado "Centro Aberto" que consiste em promover a ocupação do "centro velho".   Este é mesmo um espaço assustador nos finais de semana, a partir do momento em que o comércio fecha. Há muitos anos, acho que em 1900 ou 1910, proibiram as pessoas de morar no centro. Havia um sentido, parece: com o crescimento da cidade, os rios Anhangabaú e Tamanduateí se transformaram num esgoto fétido e foco de doenças. Reza a crônica, que os ricos já haviam saído para os palacetes nos Campos Elísios e que, pouco depois, rasgaram a avenida Paulista. No centro velho, sobraram os pobres com seu esgoto e suas doenças. A solução: canalizar o rio Anhangabaú, expulsar os pobres, proibindo-os de morar no centro. Chegaram a transladar a Igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Largo do Rosário (hoje Praça Antônio Prado) para o Largo do Paissandú, do outro lado do rio. O projeto foi transformar o centro velho num Stonehenge financeiro da época: as ruas 15 de Novembro e Boa Vista viraram a "rua dos bancos", o Martinelli construiu o Martinelli, os negócios do café aconteciam nas ruas eescritórios, construíram os Palacetes Prates e num deles instalaram a Bolsa de Valores, aconteceu o comércio "de qualidade, etc. etc. Resultado do projeto ao longo dos anos, depois da transferência do Stonehenge econômico e financeiro para a avenida Paulista: um espaço fantasmagórico quando termina o horário comercial e um lugar de passagem durente o horário comercial.   Viajei de novo lá para trás do tempo!   O projeto "Centro Aberto" propõe a ocupação do centro velho que se abre para o convívio mesmo às noites e finais de semana. Neste sábado, havia uma motivação especial: vários adesivos diziam "menos ódio, mais amor". Gostei. O carro do Tutu saiu da Praça do Ouvidor em frente ao Largo São Francisco e andou pelas ruas carregando o cortejo, esparramando música.   A sensação é das mais deliciosas: dançar pelas ruas antigas ao lado de um monte de gente se divertindo tranquilamente, na maior paz, por puro deleite.   No caminho do cortejo, uma ocupação que nos conta que o povo quer voltar a morar no centro. Faz sentido, não? Com tanto imóvel vazio, devendo imposto e tudo! Um século depois, as pessoas voltam a morar no centro.   Os caminhos fluem, o mundo anda para frente, os tempos mudam e o centro velho pode pulsar às noites! Ao irmos embora, passamos pela Praça Patriarca em direção ao Viaduto do Chá. Eu acho a visão da Praça para o Viaduto linda! Acho chique, fotogênica! Especialmente à noite, me tira o fôlego.   Atravessando o Viaduto, que surpresa boa: vimos a peça "A Última Palavra é a Penúltima 2.0" de Antônio Araújo, que acontece na passagem subterrânea do Viaduto do Chá e a Praça Ramos de Azevedo. Esta passagem era aberta quando eu era criança. Na travessia da rua Xavier de Toledo entre o Viaduto do Chá e o Mappin, havia um guarda de trânsito que era famosérrimo pelas suas performances: para impedir pedestres ou motoristas de atravessarem fora da sua hora, conversava, atuava, gesticulava, tudo com muito humor. Inesquecível o guarda, embora me escape seu nome!   Assistimos a peça do lado de fora, através de um telão a acompanhamos a movimentação dos atores na rua. Dentro e fora, tudo ao mesmo tempo.     Lá no alto do morro, na avenida Consolação com Paulista, outra surpresa: a calçada desmontada, indicando que vão abrir o acesso entre avenida Paulista e Doutor Arnaldo. Será mesmo? Desde que eu me lembro, este cruzamento sempre foi fechado, impedido. Utilizávamos a passagem subterrânea para atravessar de um lado para o outro, do Cine Belas Artes ao Riviera, Ponto Quatro, Pizzaria Micheluccio.   Desde quando este cruzamento está fechado? Estas situações de memória ou falta de memória da cidade que me seduzem.   Fiquei ali parada, deixando a garoa antiga me molhar: apesar de tanto engarrafamento, do anacronismo das manifestações pedindo a volta do regime militar, do soco inglês na mão do rapaz que desceu a avenida Brigadeiro Luiz Antônio e bateu no celular da Marlene, da matança de jovens negros, da violência de gênero, do menino que morreu depois de ser esfaqueado perto do Parque do Ibirapuera, dos estupros na Faculdade de Medicina... a lista é imensa. Mas apesar de tudo isto, abre-te Sésamo! Que se abram os caminhos! Que se derrubem os muros! Que se derretam as grades! Que se dissolvam os preconceitos! Que paremos de matar-nos uns aos outros como se estivéssemos irresponsavelmente brincando de bandido e mocinho ou num delirante filme policial norte-americano!   Que nos preparemos para a novidade: sábado mesmo, experimentamos viver sem medo no meio da multidão ou caminhando nas ruas vazias do centro velho. Em breve, acredito, torço, espero, que este seja um sentimento desfrutado por todos de maneira perene.  

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