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Deambulações

O Belas Artes

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Por tataamaral
Atualização:

O Cine Belas Artes reabriu e com ele meu coração e um pedaço da minha memória. Estou na segunda metade dos anos 70 e sou apaixonada por filmes. Nem é preciso lembrar que não havia internet, DVDs, nem mesmo fitas VHS e a única maneira de ver filmes era frequentar os cinemas. Tenho amigos, muitos amigos. Todos eles são (eram) apaixonados por filmes. Vamos à escola e depois ao cinema. Participamos de reuniões do movimento estudantil mas antes vamos ao cinema. Falamos de cinema, sonhamos cinema, discutimos cinema, comentamos cinema, respiramos cinema.

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Havia diversos cinemas na cidade mas o Belas Artes ficava (fica) na esquina da rua da Consolação com avenida Paulista.  Muito central. Um lugar por onde qualquer um podia passar e era fácil chegar, se não fosse seu caminho. Fácil também era encontrar meus amigos por lá, mesmo sem combinar. O filme era normalmente precedido por um passeio à Livraria Belas Artes, ali ao lado, e seguido de jantar ou lanche no Riviera, ou Ponto Quatro, ou Pizzaria Micheluccio. As bilheterias ficavam no centro do saguão e havia uma por sala. Às noites, certamente haveria filas, mesmo durante a semana mas estas não eram um incômodo: eram a oportunidade de conversar, combinar, deliberar.

Por isto, para mim, cinema sempre esteve associado a encontros. Eu também gostava de ir ao cinema sozinha. Sim, adorava as sessões da tarde, depois do almoço e da escola, meio sonolenta... Adorava entrar naquela gruta e me transportar para um lugar de sonho, o lugar do filme. Ainda sim, a experiência mais marcante que relaciono ao cinema, até hoje, é a do encontro.

Tem ainda outro encontro, o encontro com namorado. Sabe quando você combina sala, horário, filme e fica esperando do lado de dentro, vendo as pessoas passarem do lado de fora na rua da Consolação, tentando adivinhar de que lado ele vem? Sabe quando ele chega, te abraça e te beija muito porque os dois estão com muitas saudades? Aí você conta que não tem mais ingresso para o filme combinado e pergunta o que ele acha de ver o outro? Ele concorda, sorri e oferece comprar pipoca e guaraná?

Cinema e amores combinam muito. Já me apaixonei no cinema. Pelo que me lembro, estava esperando um amigo atrasado. O filme já havia começado. Olhei para trás na expectativa de ver o amigo e lá estava ele, um desconhecido! Lindo, absorto e banhado pela luz de algum filme francês em preto e branco.

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Mais tarde, já grávida, não saia do cinema, como sempre. Assistia a um filme de guerra no Vietnam, o nome me escapa agora. Numa terrível cena de tortura, meu bebê, na minha barriga, deu um chute e parou de se mexer. Parou. Parou mesmo! Eu, apavorada, pedi a seu pai e meu companheiro que saísse comigo. Alguma coisa assustadora aconteceu para ela parar de se mexer? Tomamos um taxi. Fomos para casa correndo para telefonar para o médico. Não havia celular. Felizmente, não era nada grave mas nosso médico nos recomendou evitar filmes violentos. Devo ter evitado, a partir de então, até o final da gravidez. Minha filha nasceu linda e saudável e eu, sempre no cinema. Morávamos perto do Belas Artes e ia para lá com ela no colo. Dormia no meu colo. Os meses se passaram e ela começou a engatinhar. Os porteiros me ajudavam a cuidar dela, evitando que ela saísse da sala enquanto eu assistia aos filmes. Frequentava diversos outros cinemas mas o Belas Artes sempre tinha uma programação especial. Minha filha cresceu mais ainda e continuamos frequentando o cinema até que ele fechou, em 2011.

O Belas Artes reabriu e com ele meu coração e um pedaço de minha memória.

O Belas Artes é um cinema de rua. Você não precisa estar exposto aos apelos de consumo que encontra num shopping center quando vai ver um filme. Você vai ver o filme e pronto!

A meu ver, o significado desta reabertura é enorme:

A meu ver, o significado desta reabertura é enorme: um alento para aqueles que desejam e lutam para que nossa cidade seja mais humana. O cinema permanece no lugar que, em 2011 pretendia-se substitui-lo por uma loja de departamentos. Traz o sentido simbólico da vitória da arte e do cinema sobre a especulação imobiliária. Tão importante quanto esta vitória é o fato de que reconhecemos este cinema como "patrimônio imaterial" da cidade. Numa cidade que se destrói, se implode ano a ano, permitir que sobreviva um lugar que esteja relacionado à nossa vida, nossa história, nossa memória, apesar da especulação imobiliária, é uma certeza de mudança de paradigma.

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O Belas Artes é nosso "patrimônio imaterial". Não se trata de uma arquitetura mas de um lugar de afeto. Reaberto, certamente será lugar de outros e novos afetos.

Agora de chama Caixa Belas Artes. Tudo aconteceu graças à luta do movimento que se chamou "Movimento Belas Artes" e é composto por pessoas que não quiseram que sua história fosse esquecida, que não aceitaram que a especulação imobiliária ditasse a substituição de um lugar de arte, cultura, encontros, fosse substituído por uma loja de departamentos, numa das esquinas mais movimentadas de São Paulo. Esta luta encontrou o poder público sensível e, através do prefeito Fernando Haddad e do secretario de Cultura Juca Ferreira, foi construída uma parceria entre a Caixa Econômica Federal, Prefeitura de São Paulo e André Sturm, que administrará o cinema junto com sua filha, a programadora Ba Sturm.

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