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Deambulações

No planalto central do país

Por tataamaral
Atualização:

O Festival de Brasília é um acontecimento, este ano ainda mais: uma curadoria ousada do comitê de seleção coloca em evidência um cinema que questiona a dramaturgia que vimos praticando e a própria divisão entre os gêneros de ficção e documentário. Jean-claude (Bernardet) tem razão: esta divisão não faz muito sentido quando pensamos no filme "Ela Volta na Quinta" de André Novais de Oliveira, que concentra seu filme numa história de família, protagonizada por ele, seus pais e irmão. André Novais filma a crise do casamento dos próprios pais. As cenas cotidianas se sucedem nos dando a impressão de um reality show familiar. O campo e contra campo vai nos revelando a mise-en-scène e algumas viradas na história a consagram. A ausência de tônus da forma (das cenas escritas e da própria mise-en-scène) expressa o esvaziamento da relação de 38 anos dos pais de André. A narrativa alterna o espaço extremamente íntimo, como o quarto de dormir dos pais e dos filhos casados (incluindo conversas na cama entre o diretor e sua esposa) e a cidade de Belo Horizonte. "Ela Volta na Quinta" ganhou os prêmios de Atriz e Ator Coadjuvantes   https://www.youtube.com/watch?v=0_ihau4GW98   Outro filme que assisti - só vi dois pois cheguei ao festival nos últimos dias - foi o longa "Ventos de Agosto", o primeiro longa "de ficção" de Gabriel Mascaro, que já havia realizado " Um Lugar ao Sol" e "Doméstica" dentre outros. "Ventos de Agosto", de imagens belíssimas, esteve na mostra competitiva do Festival Internacional de Locarno, em agosto último. O filme se passa numa aldeia onde a pesca e a extração de coco são as atividades principais. É muito prazeroso o mergulho no cotidiano do lugar e das pessoas que lidam com vento, mar, vida e morte constantemente. Ganhou os prêmios de Melhor Atriz e Fotografia no Festival de Brasília. https://www.youtube.com/watch?v=7jYv9sIfCMA   Não vi o arquipremiado, "Branco Sai, Preto Fica" de Adirley Queirós cuja história acontece no futuro e, a exemplo dos povoados palestinos nos territórios ocupados, os moradores da cidade satélite de Ceilândia precisam mostrar salvo-conduto para entrarem em Brasília. Os protagonistas do filme são um locutor e um cinegrafista que têm problemas de locomoção por terem levado tiro da PM num baile, no passado. A frase "Branco sai, Preto Fica" teria sido dita por um policial, quando a PM invadiu o baile. Louca para ver!   https://www.youtube.com/watch?v=yKZ0fhee_qA   Como disse, cheguei nos últimos dias do festival e fui abalroada pelo clima animado de discussões sobre os filmes. Acho especialmente estimulante as conversas sobre cinema no ambiente concentrado como é o Festival de Brasília: diferente de outros festivais e mostras e, talvez pela própria característica da cidade, ficamos reunidos no hotel, onde ficam hospedados os cineastas convidados e o Cine Brasília, onde as principais mostras são projetadas. O zoom zoom zoom sobre os filmes projetados acontece nas mesas do café da manhã, no saguão, na espera das vans, na antessala do Cine Brasília, nos bares ao lado do Cine Brasília, nas salas de debates, distribuídas entre UnB e outras: opiniões, discussões se dão a todo momento. Tal concentração me faz lembrar da Escuela de San Antonio de Los Baños, em Cuba, que visitei um ou duas vezes, quando estive concorrendo no Festival de Havana. Os alunos e professores reunidos dia e noite num campus distante da cidade faz com que todos respirem e exalem cinema constantemente. Amo. É o mesmo clima que encontro nas mostras de São Paulo e demais festivais de cinema. Acho realmente muito estimulante este ambiente.   Um dos filmes mega comentados foi o curta "Sem Coração" que foi selecionado para a Quinzena de Realizadores, em Cannes, e já foi exibido no Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, em agosto último e acaba de ganhar vários prêmios, inclusive Melhor Filme de Curta Metragem e Melhor Atriz em Brasília:   https://www.youtube.com/watch?v=NyY7f22qGUc   Fiquei encantada com a atriz Eduarda Samara, uma garota de 14 anos que ama cinema, estuda cinema e sabe que Marcélia Cartaxo foi a primeira brasileira a ganhar prêmio de Melhor Atriz no Festival de Berlim pelo filme "A Hora da Estrela".     Fiquei mesmo surpresa com seu interesse pelas histórias de cinema: encontro muitas pessoas da nova geração, boa parte delas vindas de cursos e escolas de cinema, que nunca viram sequer um dos filmes clássicos do cinema brasileiro, sejam eles mais antigos ou contemporâneos. Acho realmente uma falta de interesse e curiosidade não buscar conhecer as obras da história recente ou não da atividade para a qual pretendem ingressar. O que me faz concluir que estes jovens se interessam mais pelo glamour da profissão ao invés de nutrir e alimentar um real amor ao cinema. Isto me decepciona bastante. #ficaadica   Ao contrário de indiferença e desinteresse, encontrei em Brasília um ambiente diverso. Viajei a convite do Festival que, para lembrar dos 50 anos do golpe militar de 1964, promoveu diversas mostras de filmes sobre o tema: meu filme "Hoje" que recebeu seis prêmios no Festival de Brasília em 2011, inclusive o de Melhor Filme, foi um dos convidados. No catálogo, Joel Pizzini define assim a Mostra "Luta na Tela": "A Mostra Luta na Tela apresenta produções contemporâneas que abordam a resistência política e o drama existencial de militantes e personagens que vivenciaram a ditadura militar no Brasil."   https://www.youtube.com/watch?v=_eGiL7tBpTQ   Um dos lugares onde "Hoje" foi exibido foi o Centro de Ensino Médio Uni Gama, uma escola pública de arquitetura modernista que fica na cidade Satélite de Ceilândia. A sala lotada de alunos e o debate mega animado depois da projeção deixaram meu coração alegre. Fiqueiemocionada em ver meu filme exibido numa sala lotada de jovens, conhecer o ativismo do pessoal que agita o cineclube na escola, do seu desejo de faze-lo funcionar aos sábados para que o pessoal do bairro possa frequenta-lo, saber que pretendem recuperar os filmes de Afonso Brazza, o cineasta local que realizava seus filmes de maneira ultra independente. Por alguma razão, esta projeção me fez lembrar-me do meu primeiro marido e dos nossos sonhos de um cinema popular, para todos. Foi então que fiquei sabendo que o governo do distrito federal montou equipamento de projeção que irá permanecer após o término do festival, para uso do cineclube. Achei o máximo: vira e mexe frequentamos eventos que montam mega estruturas temporárias. Um desperdício! Saber que toda aquele vivência de amor e interesse pelo cinema que testemunhei poderá seguir com a estrutura de projeção montada foi animador.     Para completar minha alegria nesta curta viagem,  a cópia restaurada de "Cabra Marcado para Morrer" foi exibida no Cine Brasília na sessão de encerramento do festival.   Além do mais, uma surpresa: os cineastas concorrentes em longa metragem, decidiram, antes de saber do resultado do júri, dividir o prêmio principal entre todos .   Por estas e outras, pelas novas salas de projeção de cinema nas cidades satélite, pela consagração do filme "Branco sai, preto fica" de Adirley Queirós, cineasta de Ceilândia, pela cinefilia e ousadia que encontrei por lá, vida longa ao cinema e cineastas de Brasília!      

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