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Pra você que, alguma vez - ou várias - disse

Sobre torradas e mulheres. Ou: Eu quero marcas na minha mão.

O objetivo era prático: aproveitar o pão velho e arrumar uma função pra essa manhã de domingo com meu filho pequeno enquanto o restante da família ainda dormia. Liguei o rádio, porque ele gosta de música, e preparei o território. Faca, tábua, manteiga,  pão e paciência. Fatiei o mais fino que consegui e passei a manteiga o suficiente. Nem muito, para não ficar encharcado, nem pouco, para não ficar ressecado. Enquanto esperávamos ficarem prontas no forno, preparamos a mesa para o café. Dez minutos e lá estavam as torradas, douradas e perfumadas. Meu filho adorou a façanha e eu, bem, o que posso dizer...  Não esperava o que estava por vir. Assim como geralmente não esperamos os detalhes que realmente marcam a nossa vida.

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Por Maria Dolores
Atualização:

Ao morder o primeiro pedaço comecei a rir, um riso seguido por um aperto no peito e uma vontade de chorar, a contradição coerente da nostalgia. Aquela torrada não era minha.  Era a torrada que a minha bisavó Alba fez quase todos os dias da sua longa vida. Lembrei dela, da sua mão cheia de pintas pretas que eu tentava, em vão, contar e que, segundo ela, eram o resultado de uma vida na cozinha. Aquela mão me fascinava. Eu queria ter um dia uma mão como aquela, porque achava que uma mão sem manchas era o mesmo que uma vida sem história. Eu adorava as suas torradas, a sopa de legumes e o creme de espinafre. Adorava o banheiro com banheira de porcelana azul e o enorme quintal onde brincava com pedaços esquecidos da rotina. O pé de um sofá. Um vaso quebrado. Um abajur sem lâmpada.

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Lembro da casa dela na rua Alagoas, em Belo Horizonte, com seu pé de Bico de Princesa na entrada - casa que continua lá, sobrevivente entre prédios e burburinho. Lembro do meu bisavô Ladeira gritando "Aaaalba", num grito que eu achava curioso e engraçado, mas que minha bisavó deve ter suportado como um martírio silencioso por todos os anos de um casamento com regras e papeis muito bem definidos e pouco espaço para tolas alegrias.

Lembro de brincar sobre uma mesa de centro que era enorme e hoje apenas alcança segurar alguns copos. Lembro do presidente João Figueiredo anunciando as eleições diretas na TV em preto e branco da sala. Eu não sabia o que eram eleições diretas, não sabia quem era aquele senhor, mas sabia que era algo importante. Lembro das tardes e mais tardes naquela casa de chão de taco e carinho. Voltando do Minas, esperando meu pai ou minhas tias, passando férias, feriados, noites e dias. Mas lembro, hoje, principalmente, da sua torrada e da maestria com que minha bisavó regia a cozinha, os ingredientes, os sabores, a temperatura. Ali, e só ali, ela podia ser senhora e rainha. Era o que lhe era permitido, e ela o soube ser com dignidade e magia.

Ainda não tenho as manchas na mão que eu tanto admirava quando era pequenina. Mas confio que elas surgirão, no seu devido tempo, e não pretendo apagá-las na tentativa de manter uma juventude que não existe. Quero uma vida com histórias, e quero poder me orgulhar delas. Quero ser senhora e rainha do reino que o cotidiano me permitir e que eu puder construir. Por isso, hoje, no Dia Internacional da Mulher, presto minha singela homenagem à minha querida bivó Alba, à sua torrada, às marcas na sua mão e a todas as mulheres que fazem das suas próprias marcas motivo de orgulho e alegria.

 

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