PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Dicas para viver melhor e se possível por mais tempo

A sabedoria com que se gasta a vida

Esta semana temos um convidado especial aqui, o dr. Pablo Gonzáles Blasco que conduz de forma incrível o Clube da Leitura do Programa Longevidade do Hospital 9 de Julho, que nos convida a fazer algumas reflexões sobre a obra "A hora e a vez de Augusto Matraga", de Guimarães Rosa

Por Marcelo Levites
Atualização:

 

Um dos livros que discutimos no Clube da Leitura do Programa Longevidade foi "A hora e a vez de Augusto Matraga", conhecida obra de Guimarães Rosa. O projeto visa oferecer, além de ações de prevenção e promoção da saúde, atividades físicas e intelectuais para pessoas que alguns insistem em chamar de terceira idade. Qualificação esta -a de terceira idade- que me desgosta, não apenas porque devo estar próximo a ser incluído nela, mas porque não quer dizer absolutamente nada. Afinal, o que conta é a vontade de viver e a sabedoria com que se gasta a vida, a idade é apenas um detalhe. Ai está o nosso Augusto Matraga que é um bom exemplo de que a sabedoria - encontrar a hora e a vez de cada um - não tem idade.

PUBLICIDADE

Tinha lido o livro anos atrás. Mais de uma vez. O resumo que minha mente arquivava era algo assim como "uma apologia da mansidão" unida àquela frase inesquecível: "P'ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!"  Esquecera os detalhes - que agora pude saborear novamente - mas no meu íntimo, a historia do jagunço estava atrelada à passagem bíblica que louva o homem paciente "que por dominar o seu ânimo vale mais do que o conquistador de cidades". O homem paciente, mas decidido e focado: "Eu vou p'ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal. ... E a minha vez há de chegar...."

Agora, numa agradável tertúlia de veteranos, a maioria senhoras, discorríamos sobre as aventuras do Augusto Matraga. Aprontou todas, não respeitava filha nem mulher de ninguém, matava quase por prazer, e até a própria família trazia no esquecimento. A mulher, Dionora, "amara-o três anos, dois anos dera-os às dúvidas, e o suportara os demais". Quando li essa frase, levantei a vista e vi o sorriso compreensivo da plateia, como afirmando "já vi esse filme antes".

Matraga apanha uma surra tremenda dos que eram outrora seus capangas, está à beira da morte, e mais morto do que vivo é cuidado pelo casal de pretos que lhe ajudam a sarar....E a pensar, a refletir. Gostaria de estar morto, mas o afetuoso cuidado da mãe Quitéria lhe traz à realidade. "Mesmo assim, com isso tudo, ele disse a si que era melhor viver. Bebeu mingau ralo de fubá, e a preta enrolou para ele um cigarro de palha. Em sua procura não aparecera ninguém. Podia sarar. Podia pensar".

Bela pedagogia, a do carinho, que é o que mais arrasta, que nos tira do fundo do poço das próprias misérias. Algo do qual carecemos nos dias de hoje. Sobram arengas e discursos, promessas e imposições, mas falta o carinho que facilita a retificação da conduta equivocada. O tempo e o amor catalisam a mudança de Augusto. "Esfriou o tempo, antes do anoitecer. As dores melhoraram. E, ai, nhô Augusto se lembrou da mulher e da filha. Sem raiva, sem sofrimento mesmo, só com uma falta de ar enorme, sufocando. Respirava aos arrancos, e teve até medo, porque não podia ter tento nessa desordem toda, e era como se o corpo não fosse mais seu. Até que pode chorar, e chorou muito, um choro solto, sem vergonha nenhuma, de menino ao abandono. E, sem saber e sem poder, chamou alto, soluçando: Mãe, mãe".

Publicidade

Mãe Quitéria canaliza o desespero para águas seguras: "Não faz assim, seu moço, não desespera. Reza que Deus endireita tudo. P'ra tudo Deus dá jeito". E chama o padre que facilita o arrependimento, e lhe mostra o caminho das pedras:  "Você nunca trabalhou, não é? Pois agora, por diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Modere esse mau gênio; faça conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que ele... Peça a Deus assim, com esta jaculatória: 'Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso".

Matraga está determinado a mudar, e aplica-se ao conselho com afinco. "Sempre saia para servir aos outros, quando precisavam, ajudava a carregar defuntos, visitava e assistia gente doente, e fazia tudo com uma tristeza bondosa, a mais não ser. Até que, pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo das águas, que vinha vindo paralela".

É pretensão inútil sintetizar a fantástica descrição que neste ponto o escritor mineiro faz da mudança do clima acoplada à mudança do estado de espírito do protagonista. Uma prosa poética que delineia a transformação. Somente lendo. "Não tinha precisão de enxotar as tristezas. Não pensava nada. Então tudo estava mesmo muito mudado, e nhô Augusto, de repente, pensou com a ideia muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, mas se riu: Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria. Agora eu sei que ele está se lembrando de mim".

Com a historia lembrei-me dos meus pacientes deprimidos, quando começam a melhorar, a ver o mundo colorido novamente.  Lembrei-me da alegria que tive o privilégio de contemplar nas conversões de alguns amigos; e por lembrar , até lembrei dos místicos, de Teresa de Ávila -estou relendo uma biografia dela neste momento- e do contentamento com que são inundados quando, com uma determinada determinação seguem os amores mais altos.  E pensei -mais uma ver- se o nosso carinho -diário, habitual, aquele que se manifesta no esforço por ouvir, no detalhe- está realmente à altura dos sinceros desejos de mudança que todo homem encerra lá dentro. Esses foram, entre outros, os meus pensamentos. Os comentários que chegaram da distinta plateia são ainda melhores: todos nós temos um Augusto Matraga dentro. Mas é impossível descrever. Somente estando lá para ver, para ouvir, para refletir.

*Médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA - Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM).

Publicidade

 

 

 

 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.