Crescimento dos alimentos ultraprocessados: o fim da comida caseira?

Guia Alimentar para a População Brasileira alerta para os perigos do consumo elevado desse tipo de alimento

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Por Juliana Domingos de Lima
Atualização:

Ao pensar em retrospecto em quais alimentos você consumiu hoje, quantos deles estavam in natura, ou seja, não haviam sido nada alterados depois de retirados da natureza? A probabilidade é que boa parte deles tenha sofrido algum grau de processamento, já que desde a década de 80, os produtos ultraprocessados apresentam participação crescente na dieta brasileira.

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Os alimentos ultraprocessados são formulações da indústria, feitos em sua maioria ou totalmente a partir de ingredientes e aditivos e contendo pouco ou nenhum alimento integral, como é o caso dos refrigerantes, do macarrão instantâneo e dos salgadinhos. Termo criado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (NUPENS/USP), se diferencia da categoria dos highly processed (altamente processados, em inglês) por não se referir apenas à intensidade do processamento, mas também ao propósito, que é o de substituir alimentos in natura, e não de complementar a alimentação.

Segundo o estudo sobre a “Participação crescente dos ultraprocessados na dieta brasileira” entre 1987 e 2009, publicado em 2013 na Revista de Saúde Pública, o aumento da aquisição de produtos prontos para consumo por domicílio metropolitano do Brasil nessas duas décadas se deu em todas as classes sociais. Nos anos 2000, a pesquisa foi feita em âmbito nacional e confirmou a amplitude do problema em todo o País. Paralelamente ao aumento, houve queda significativa na participação de alimentos e de ingredientes culinários na dieta brasileira nesse período.

Guia Alimentar para a População Brasileira. Publicado em 2014, em parceria entre o Ministério da Saúde e a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), o Guia Alimentar para a População Brasileira propõe uma classificação inovadora dos alimentos, de acordo com seu grau de processamento industrial. Pensado para auxiliar e dialogar com a população em geral, não apenas com especialistas em nutrição, o guia fala mais de comida de verdade do que de nutrientes e alia as recomendações nutricionais a aspectos sociais, econômicos e ambientais da mesa brasileira. “Por ser inovador, o guia precisou mobilizar apoios. Ele tem um impacto na economia brasileira, na tendência de consumo de ultraprocessados ao incentivar os minimamente processados e as comidas preparadas. Essa orientação mexe com interesses poderosos.  É uma “guerra surda”, o Produto Interno Bruto (PIB) da alimentação no País é muito grande e há vários agentes econômicos lutando pelos lucros”, relata Carlos Augusto Monteiro, professor da FSP-USP e coordenador técnico do guia em parceria com o Ministério, sobre o processo que deu origem à publicação. Ele diz ainda que a medicalização da alimentação está por trás da elaboração de guias nutricionais e alimentares, mas que a publicação de 2014 procura sair desse paradigma tradicional por considerar a redução da alimentação só a nutrientes “muito pobre” e pretender estimular as pessoas a repensarem suas vidas em termos dos hábitos alimentares.

O Guia alimentar propõe quatro categorias de alimentos, segundo seu grau de processamento:

(Veja mais sobre cada tipo, definição e exemplos na galeria abaixo.)

O impacto do aumento no consumo de ultraprocessados pelos brasileiros nas últimas três décadas atua tanto na saúde individual quanto em aspectos coletivos, como a cultura alimentar, a vida social e o meio ambiente . São muito pobres em fibras (essenciais para a prevenir as doenças do coração, diabetes e vários tipos de câncer) e suas características estimulam o consumo excessivo de calorias. Não trazem quantidade significativa de vitaminas, minerais e outras substâncias presentes em alimentos in natura ou minimamente processados, além de apresentarem maior teor de açúcar livre, sódio, gorduras totais e saturadas. Com esse perfil nutricional tão desfavorável, não é de se admirar que estejam entre os fatores da epidemia mundial de obesidade: “a causa da epidemia de obesidade mais importante é o consumo de ultraprocessados, que são rapidamente absorvidos pelo organismo e de baixo teor de saciedade. Famílias que compram mais desses produtos têm maior risco de obesidade e há estudos recentes relacionando o consumo ao aumento do Índice de Massa Corpórea (IMC) médio da população”, diz o professor Monteiro, que é também coordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (NUPENS/USP).

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É difícil combatê-los exatamente pelos atributos exaltados nas propagandas - “irresistível” ou “impossível parar de comer” são lugares-comuns dos anúncios de ultraprocessados, que são alimentos ultra saborosos, em geral vendidos em grandes porções, duráveis e convenientes, na maioria das vezes não requerem preparação culinária alguma, aliando por essas razões grande aceitação e baixo custo. “A atração que exercem naturalmente é magnificada pelo marketing. Por isso o guia é super importante do ponto de vista da regulação, de informar as pessoas para se contrapor ao estímulo da indústria”, reforça Monteiro para explicar de que forma as características sensoriais desses produtos e as estratégias agressivas de marketing contribuem para o crescimento acelerado do consumo desses produtos no Brasil. Há ainda a desvantagem ambiental desse aumento, cuja produção eleva o volume de resíduos sólidos e o consumo de água e energia pelas indústrias e reduz a variedade biológica dos gêneros alimentícios, por conta da compra em massa de uma única variedade do alimento in natura, enquanto a cultura culinária preserva a diversidade das espécies.

 

Quer saber por que comemos mais ultraprocessados e como mudar esse quadro? Leia a segunda parte da série amanhã em Vida & Estilo.

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