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O povo ju/wasi e a fantasia da vida idílica

Por Fernando Reinach
Atualização:

Nos últimos 150 anos, o homem conseguiu a façanha de quintuplicar sua população. O preço foi a destruição do meio ambiente. Agora nos perguntamos se as mudanças são reversíveis e até que ponto estamos dispostos a sacrificar nosso modo de vida para revertê-las. Como seria nossa vida se abandonássemos a agricultura, os animais domesticados e nossa tecnologia e tentássemos viver no planeta sem destruí-lo? Difícil saber, mas é possível ter uma idéia estudando uma sociedade que durante 35 mil anos explorou de maneira sustentável seu meio ambiente: os ju/wasi, que habitam as savanas que cercam o deserto de Kalahari, na África. Em 1950, Laurence Marshall, um dos fundadores da Raytheon (onde foi desenvolvido o forno de microondas), se aposentou e decidiu levar sua família para o deserto de Kalahari. Foi lá que descobriram e conviveram por décadas com os ju/wasi. No ano passado, 56 anos depois da primeira expedição, a filha de Marshall publicou um livro em que descreve de maneira apaixonada como os ju/wasi conseguiram viver por milhares de anos perfeitamente integrados ao seu ecossistema. Ironicamente, nesses 50 anos a Raytheon se transformou em um dos maiores fabricantes de armas do planeta e a cultura ju/wasi foi praticamente destruída por guerras e conflitos com os colonizadores. Os ju/wasi não praticam a agricultura nem nunca domesticaram um animal. Não constroem cidades ou casas, dormem no chão e vivem em constante migração, se alimentando da caça e dos vegetais coletados a cada dia. Praticamente não estocam comida. Vivem em grupos de algumas dúzias de pessoas, o máximo que o meio ambiente pode suportar sem ser degradado. Os ju/wasi conhecem profundamente a botânica da savana, se alimentam de mais de 80 tipos diferentes de vegetais e voltam à mesma árvore ano após ano para colher frutos e tubérculos. Caçam utilizando flechas envenenadas ou simplesmente correndo atrás dos animais por dias até que o animal exausto se entrega e é abatido. Os ju/wasi fazem parte da cadeia alimentar das savanas e são caçados pelos leopardos, que atacam os acampamentos durante a noite. Ao se deslocarem para obter alimentos, levam todas as suas propriedades: um pedaço de madeira para cavar raízes, um par de gravetos para acender o fogo, arco, flechas, lanças e uma casca de ovo de avestruz para transportar água. Idosos que não conseguem acompanhar o grupo muitas vezes são devorados pelas hienas. Como cada mulher não pode carregar mais que uma criança, o espaçamento entre os filhos é geralmente de quatro anos. Cada criança que nasce é examinada cuidadosamente pela mãe, que, ao menor sinal de má-formação, sacrifica o filho. Eles praticam a própria seleção natural. Atualmente, um número crescente de pessoas acredita que uma volta ao passado poderia solucionar parte dos problemas da humanidade. Estamos tão distantes de nossos ancestrais que somos presas fáceis de fantasias de uma vida idílica em meio à natureza. As fantasias alimentam movimentos obscurantistas que têm se oposto ao desenvolvimento científico. Ler sobre a difícil vida dos ju/wasi é um choque de realidade para aqueles que gostariam de voltar ao passado. Nosso futuro no planeta Terra é incerto, mas o passado não faz parte dele. Mais informações em The Old Way. A Story of the First People, por Elizabeth Marshall Thomas, Farrar Straus Giroux, New York, 2006. * Biólogo (fernando@reinach.com)

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