Costureiras contam histórias de suas dores por meio de quilts

Há mais de dez corporações nos EUA dedicadas a promover a tradição da cultura negra americana

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Por Patricia Leigh Brown
Atualização:
"Firestorm", de Marion Coleman, inspirado nos incêndios de 1991 em Oakland e Berkeley Hills Foto: Eric Murphy/ The New York Times

Oakland, Califórnia – Os incêndios florestais ocorriam em toda a Califórnia quando Marion Coleman começou "Firestorm", seu quilt sobre as chamas que assolaram Oakland e Berkeley Hills, em 1991. É um inferno capturado no pano: as silhuetas enegrecidas de árvores, envoltas em chamas de intricados pontos em redemoinho. Marion, assistente social aposentada, hoje faz colchas profissionalmente e é uma das 80 mulheres – com alguns homens – que se encontram todos os meses como membros da multicultural Corporação de Costureiras Afro-Americanas de Quilts de Oakland. É uma das mais de dez corporações em todo o país dedicadas a promover a tradição na cultura negra americana, mas um dos poucos grupos que assumiu o desafio de definir uma cidade por meio dos quilts. Cerca de seis meses atrás, Marion e suas irmãs de corporação tiveram uma ideia elaborada: desenhar colchas narrativas que transmitiriam através do pano a personalidade, a história e a complexidade social de sua cidade natal. “Nosso nome é Corporação de Costureiras Afro-Americanas de Quilts de Oakland”, enfatiza Marion. “Há um sentimento de posse e orgulho do nosso lugar.” O resultado é “Bairros se Unindo: Quilts em Oakland”, uma exibição de mais de 100 peças. As colchas revelam tantas facetas da vida aqui quanto o número de costureiras existentes. “Lake Merritt Foggy Morning”, de Alice Beasley, por exemplo, é uma mostra temperamental de um fenômeno meteorológico da Região da Baía que pode algumas vezes parecer um ser vivo à medida que envolve a paisagem. Alice usa camadas de seda azul e organza pintada para representar a neblina etérea cobrindo o lago.

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Outras costureiras têm um alinhavado mais sóbrio. Em uma peça chamada “Hands Up Don’t Shoot”, Jackie Houston, de 61 anos, fala sobre raça e brutalidade da polícia, mostrando em sua colcha uma assustadora imagem gigante de seu neto de sete anos, com as mãos levantadas de maneira dramática, estendendo-se para além das bordas de pano. Jackie diz que usou o neto para evocar os perigos de ser um garoto afro-americano. Falando das mortes recentes pelo país, ela completa: “Poderia ser o filho de qualquer pessoa”.

Historicamente, fazer colchas tem sido uma forma de arte acessível às pessoas marginalizadas, especialmente mulheres, que “enxergam seus pensamentos no pano”, afirma Carolyn L Mazloomi, historiadora de quilts e curadora independente que fundou a associação sem fins lucrativos Rede de Mulheres de Cor Costureiras de Quilts. “É a primeira coisa em que somos enrolados quando nascemos e a última a tocar nosso corpo quando deixamos o reino da terra”, diz ela. Mas, por muitos anos, Carolyn conta, os historiadores culturais acharam que as colchas afro-americanas eram todas iguais, assumindo que as costureiras negras tinham uma preferência por cores brilhantes e peças grandes e assimétricas – como as famosas feitas em Gee’s Bend, no Alabama – ou sinais e símbolos relacionados à África. A percepção era que poucas colchas produzidas pelas afro-americanas eram bem feitas, com um trabalho preciso das peças e costuras pequenas. O livro de Carolyn, “And Still We Rise: Race, Culture, and Visual Conversations” (E Continuamos nos Levantando: raça, cultura e conversas visuais), prova que essa noção está errada. Em casa, Fran Porter, a grande dama da corporação aos 91 anos, mantém um “esconderijo” de tecidos e fios em caixas de plástico ordenadamente empilhadas e um caderno de anotações do lado da cama para desenhar conceitos a qualquer hora. Ela escolheu representar grafites em sua colcha porque “me fascinam e me repelem”, conta. Fran começou a fazer quilts aos 82 anos. “Achei que era para as mulheres mais velhas. E finalmente percebi que havia me tornado uma delas.” Fran Porter foi assistente social por 20 anos. Na equipe da corporação também há uma professora de dança haitiana, uma litigante aposentada, uma auditora dos Correios e uma editora de jornal aposentada. A presidente atual, Marie Taylor, é uma ex-freira que passou 35 anos em um convento. (“Decidi que queria controlar minha própria vida”, explicou ela sobre sua saída.)

A ressonância emocional de costurar os quilts talvez seja melhor personificada na vida e na arte de Ora M. Knowell, de 70 anos, membro da cooperativa e filha de meeiros, que perdeu dois filhos para a violência armada de Oakland. Ora cresceu em uma casinha em uma fazenda no Mississippi. Quando era garota, dormia do lado do fogo sob uma manta pesada feita por sua mãe com lã velha e pedaços de roupas de algodão. Ela odiava a costura. “Não tínhamos dedais, e nossos dedos ficavam furados e doloridos de ter que costurar para nos manter quentes”, conta Ora. Mas seu talento especial para fazer bonecas com varinhas e espigas de milho acabou se revelando uma afinidade com a costura. Quando seu primeiro filho, Christopher, morreu um 1995, aos 25 anos, ela canalizou sua dor em um painel costurado que incluía a transferência de uma foto dele aos 13 anos e luvas tricotadas cor de rosa – um símbolo próprio da necessidade de as mães protegerem seus filhos. Quando o segundo filho, Daniel, de 34 anos, foi morto em 2002, Ora respondeu com uma colcha honrando as 113 vítimas de homicídio apenas naquele ano em Oakland. “As pessoas dizem que quanto mais a morte vem, mais imune a ela você fica, mas não é verdade”, diz Ora. No final, ela conclui que “não vou deixar o assassino me matar ficando com medo”. Sua última colcha, “Black Justice Matters”, é um comentário costurado à mão e na máquina sobre o que ela vê como um sistema judiciário desequilibrado. Cerca de uma década atrás, Ora começou a instituição sem fins lucrativos West Oakland Lower Bottom Fatherless Children’s Foundation, para ajudar crianças que estão sofrendo com a perda de pessoas da família por causa da violência. Ela convida crianças para ajudar a criar bonecas de meias e outros projetos artísticos, bordando o rosto da pessoa querida em algodão “para trazer conforto”. “Ver outras vítimas sofrendo da mesma maneira que eu, aqueles que não conseguem falar nem ser ouvidos, me motivou e me inspirou a usar minha arte como voz”, explica Ora. Sua alma é a da costureira de quilts – curando dores por meio de histórias que talvez apenas os tecidos possam contar.

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