O Brasil na passarela

Símbolos da cultura nacional como a arte indígena e o carnaval dominam a cena durante os desfiles da SPFW

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Por Maria Rita Alonso e Giovana Romani
Atualização:
Chapéus, listras e calças brancas: o verão deLenny Niemeyer busca referências nos bailes de carnaval cariocas Foto: Márcio Fernandes/Estadão

Pense em uma nova versão de Iemanjá, de vestido branco fluido e transparente, cabelos pretos longos e colares de contas. Na figura do malandro carioca, de calça branca, camisa listrada e chapéu de palha. Em Carmen Miranda, com suas flores e pulseiras. Em índios modernos usando vestimentas de palha de seda. Nas rendas cearenses, na estampa de chita, no artesanato paraibano, nos búzios do candomblé. Estava tudo lá, de uma maneira ou de outra, estilizado, decupado. Em tempos de nacionalismo crescente, consciente ou inconscientemente, os estilistas fizeram alusões aos símbolos, a riqueza cultural e a força da identidade brasileira nas passarelas da edição de verão da São Paulo Fashion Week, que terminou na última sexta, 17.

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Nenhum criador levantou bandeiras, fez discurso político ou lançou mão do verde amarelo nas roupas. Longe disso. Mas o zeitgeist, o espírito do tempo, promoveu coincidências como as inspirações das coleções das grifes Cavalera e Osklen - a primeira, na tribo indígena Yawanawá; a segunda, na tribo Ashaninka, ambas localizadas no Acre perto da fronteira com o Peru. Enquanto Alberto Hiar, diretor criativo da Cavalera, trouxe 20 índios da aldeia para realizarem um ritual durante o desfile realizado no meio do Parque Villa-Lobos, Oskar Metsavaht, da Osklen, fez uma apresentação intimista em uma galeria de arte. 

De forma pouco literal, Metsavaht apresentou uma releitura das tangas em tops de seda de palha, abertos nas laterais, e usou simbolismos indígenas na estampa gráfica, com penas gigantes estilizadas. “Minha ideia foi fazer uma síntese. Poucos looks, poucos tecidos e poucas cores”, disse ele sobre a coleção. A bem da verdade, a escassez de matéria prima no mercado nacional, a alta do dólar e a instabilidade econômica vêm obrigando os estilistas a buscar uma nova forma de criar e produzir, segurando os custos. “De uns anos para cá, temos feito um esforço para zerar nossos estoques de aviamento e de tecido”, conta o estilista Alexandre Hechcovitch, que fez um dos desfiles mais consistentes do evento. “Para usar algo que já apresentei em outras coleções, penso em novas lavagens e exercito a minha criatividade. É uma mentalidade que ajuda a saúde financeira da empresa.”

Oskar Metsavaht e as modelos da Osklen: roupas de tecidos naturais inspiradas na estética da tribo indígena Ashaninka Foto: Sérgio Castro/Estadão

A carioca Isabela Capeto aprendeu essa lição a duras penas. Após comprar a própria marca de volta do conglomerado de moda InBrands, ela retornou este ano à SPFW com uma apresentação pequena, realizada em um apartamento no centro de São Paulo. Suas peças se mantém altamente artesanais, feitas com esmero e bordadas com conchas, contas, búzios e minipérolas - segundo a estilista, a coleção é um presente para Iemanjá. A cultura dos orixás e do candomblé conduziu também o desfile da grife paulistana Têca, assinada por Helô Rocha. Crochês, bordados, rendas, franjas de pedrarias, camisetas com a inscrição “axé” (saudação de boas energias derivada da língua iorubá) remeteram a uma Bahia moderna habitada por mulheres ousadas e poderosas, bem representadas na passarela pela modelo Lea T., que, ao fim do desfile, surgiu com os cabelos pretos longuíssimos, de longo branco transparente arrematado por colares de contas. Qualquer semelhança com Iemanjá não é mera coincidência. 

Iódice e Giuliana Romanno, outras duas marcas focadas em consumidoras contemporâneas e conectadas, tiveram a cultura e a natureza nordestinas como ponto de partida. Ao som de Caetano Veloso, a grife de Valdemar Iódice mostrou peças de renda, algodão, seda e linho rústico em uma cartela de cores com tons terrosos e amarelo dendê, além de uma estampa floral que fazia alusão ao tecido de chita, mas em versão suave e sofisticada. A Bahia da estilista paulistana Giuliana Romanno vem ainda mais discreta. Surge nas argolas de jacarandá dos cintos, nos pingentes de pedras naturais das roupas, nas tramas vazadas que lembram redes de pescadores, na sensualidade da alfaiataria, no branco… Ah, o branco. 

A cor mais vista na temporada é a cara do verão, claro. Mas também sugere pureza, paz, calmaria. Enfim, a vibe da apresentação da estilista Paula Raia, que abriu as portas de sua casa no Jardim Europa para mostrar, em um exercício de modelagem respeitável, variações de longos em tecidos crus, neutros e de aspecto rústico, feitos ainda com cordas e telas. “Paula tem um tempo próprio e nos convida a entrar nele”, diz Camila Yahn, editora de moda do portal FFW. “As modelos caminham devagar e sua roupa transmite o zelo em cada etapa do processo.”

Desfile da Iódice: estampa de chita revisitada em uma homenagem ao nordeste com trilha Caetano Veloso Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Ao transportar seus convidados para uma outra dimensão de tempo e espaço, em que o natural imperou e o som dos pássaros se sobrepôs ao dos smartphones, Paula foi responsável por um dos pontos altos da semana. Outro deles veio na apresentação sensível de Lenny Niemeyer. A grife da estilista carioca apresentou um baile de carnaval sofisticado, com maiôs com decotes V e biquínis com tiras largas na lateral, além de camisas listradas inspiradas em marinheiros, vestidos de seda com losangos tipo pierrôs e estampas de frutas tropicais que lembravam os arranjos dos chapéus de Carmen Miranda. Mais brasileiro que isso? Só a despedida de Gisele Bündchen, modelo responsável por trazer os olhos do mundo para a moda feita aqui. A mensagem escrita na camiseta com a qual a top deixou a passarela da Colcci parece oportuna: o melhor ainda está por vir. Que assim seja.

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