Pelo fim dos jeans com lavagem envelhecida

Calças jeans artificialmente desgastadas perpetuam mitos a respeito do trabalho e obscurecem as dificuldades reais daqueles que fazem as roupas. Quando fingimos ser vaqueiros ou mecânicos, o trabalho manual começa a parecer um pouco menos real

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Por Jacob Brogan
Atualização:
Capa do disco Born in the U.S.A., de Bruce Springsteen, lançado em 1984 Foto: Reprodução

Quando Bruce Springsteen apareceu vestindo jeans na capa de seu álbum de 1984, Born in the USA, a imagem evocou mais do que seu lado americano ou sexy. Ela consolidou sua autenticidade enquanto membro da classe trabalhadora. A foto de Annie Leibovitz nos diz que Springsteen é sexy e americano porque trabalha duro. E sabemos que ele trabalha duro porque ele veste jeans.

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Mais especificamente, uma calça jeans desfiada exatamente nos lugares certos. Durante quase um século, o jeans foi considerado um artigo essencial das roupas de trabalho porque o trabalho deixa sua marca no tecido. Quanto mais usamos um par de jeans, mais a camada externa fica desbotada, gradualmente revelando as fibras brancas ou cinzentas logo abaixo.

Como o jeans desbota mais rapidamente nos pontos em que aplicamos mais pressão, os padrões autênticos do desbotado podem revelar muito a respeito do que fazemos enquanto usamos nossas calças. Ao flexionar e estender os joelhos enquanto agitamos uma picareta sobre a cabeça, um típico desenho de “alvéolo" começa a se formar na parte traseira das pernas. Aqueles que passam o dia sentados diante do computador têm calças desbotadas na parte de trás. 

É revelador que o jeans usado por Springsteen esteja praticamente intacto nessa parte: apenas a carteira deixou sua marca. Esse detalhe indica que, seja qual for o emprego dele, ele trabalha de pé.

Mas, desde os anos 1980, muitos adotaram essa estética, vestindo-se com jeans que são desbotados na fábrica, e não nos corpos durante o trabalho. Por mais que os entendidos tenham declarado que roupas desse tipo estejam “fora de moda”, as calças com lavagem pré-desbotada se recusam a sair de cena.

Talvez isso ocorra precisamente porque essas roupas permitem que fantasiemos a respeito de formas de trabalho manual cada vez mais distantes. O jeans com lavagem pré-desgastada é um objeto de fantasia, que nos permite brincar de ser outra pessoa sem deixar nossas bolhas digitais. Quer percebamos ou não, para aqueles que usam jeans pré-desbotados, todos os dias são o dia das bruxas.

Eis o problema: as calças jeans artificialmente desgastadas perpetuam mitos a respeito do trabalho e obscurecem as dificuldades reais daqueles que fazem as roupas. Quando fingimos casualmente ser vaqueiros ou mecânicos, o trabalho manual começa a parecer um pouco menos real, e um pouco menos substancial. 

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É verdade que esse problema não se limita às roupas: Seth Perlow, crítico cultural da Universidade Estadual de Oklahoma, diz que o fascínio inicial despertado pela interface gestual do iPhone ajudou a ocultar os gestos reais dos trabalhadores que fabricam o aparelho. Mas o desgaste falso traz uma importância especial: esse detalhe pode estar literalmente matando os trabalhadores quase invisíveis que os fabricam para nós.

Tradicionalmente, as fábricas de tecidos usam jatos de areia para desgastar seletivamente as camadas de tintura do tecido. Em 2005, um médico turco demonstrou de maneira conclusiva que os trabalhadores têxteis que operavam essas máquinas desenvolviam quadros de silicose num ritmo alarmante. Doença respiratória incurável e frequentemente fatal, a silicose há muito era associada a profissões como a mineração. Mas se antes a silicose precisava de décadas para se desenvolver, os trabalhadores que lidam com o jateamento com areia às vezes a contraíam em questão de meses. 

A ironia dessa situação merece nossa atenção. Os trabalhadores que fazem nossas calças estão morrendo em decorrência da doença que antes afetava os trabalhadores cujas calças tentamos imitar. Apesar dos esforços para proibir ou limitar o uso de jatos de areia, a prática ainda não desapareceu completamente. Um estudo realizado em 2013 com seis fábricas têxteis chinesas revelou que os jatos de areia ainda são amplamente usados. O maquinário foi simplesmente afastado dos olhares do público, o que significa que as medidas de segurança nunca foram tão ignoradas quanto agora. 

Além disso, o relatório indica que outras maneiras de desgastar os jeans podem ser igualmente perigosas. Os trabalhadores raramente recebem treinamento de segurança adequado antes de serem designados para lidar com permanganato de potássio e outros produtos químicos usados para desgastar os pigmentos índigo, por exemplo. Em outras instalações, os trabalhadores agora usam as mãos para desgastar os jeans com areia, prática cujos riscos não foram devidamente avaliados.

A proibição de práticas perigosas como o jateamento com areia pode ajudar, mas há uma solução mais simples: vamos guardar as roupas desse tipo para as festas à fantasia e deixar de lado as roupas pré-desgastadas. Da próxima vez que comprar calças, seja mais parecido com Springsteeen: permita que o seu traseiro deixe a própria marca.

Tradução de Augusto Calil

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